sexta-feira, 19 de julho de 2024

Com licença, vó.

Com licença, vó. Preciso ir até o seu quarto e abrir os seus armários e as suas gavetas, inclusive aquela que fica trancada. Não se preocupe, eu sei onde você guarda a chave. Vim ajudar a desfazer a sua ordem, espero que isso não te aborreça muito.

Com licença, vó. Os recibos, os extratos e contracheques já não são garantia de nada. Até os comprovantes têm prazo de vida. Foi bom a senhora mantê-los caso uma pane no sistema apagasse seu histórico de trabalho ou se alguém resolvesse contradizer suas dívidas já honradas. Agora, nada disso é mais preciso. Vou colocar tudo no lixo, tudo bem? O papel podemos reciclar.

Com licença, vó. Eu sei que é bonito ver as linhas de costuras todas juntas. Uma cor de linha ornando com cada tecido, mas parece que as linhas também têm prazo de vida. Arrebentam-se com o mínimo esforço e já não serviriam para coser nada. Os elásticos parecem novos, mas ressecaram nos fundos das gavetas enquanto aguardavam sua convocação, assim como as rendas e os botões. Falando em botões...

Com licença, vó. Eu sei que os botões que estão no vidro são os seus preferidos. É uma pena que não houve a oportunidade de usá-los. Talvez ainda sirvam para alguém, não sei se os botões têm prazo de vida. Pode ser que eles durem mais do que todas as coisas e, sendo assim, ainda sejam úteis, mas para uma satisfação que não mais será sua. Acho que posso doá-los, não é mesmo?

Com licença, vó. Agora já é demais! Essas maquiagens vencidas devem até fazer mal à pele. Repara só, como esses vidros estão melados e cheiram mal. Seus frascos e poções mágicas - misturas de própolis, babosa e águas boricadas - você jura serem os remédios para todos os males. Mas já não há mais dores nem corpo para serem tratados.

Com licença, vó. Vou levar essas fotos para mim. Gostos dessas, de um tempo anterior a nós, quando você era moça e toda a sua longa vida se aninhava dentro do seu sorriso. Também vou levar o carimbo com o seu nome para guardar do lado do meu, nossas duas identidades juntinhas na gaveta, confirmando quem somos, ou quem fomos.

Com licença, vó. Os sacos já estão cheios e eu também me espanto em ver tudo ir embora. Mas, veja, se eu não fizer isso agora, talvez outra pessoa o faça com a urgência pelos espaços e sem reverência. Dispenso cada coisa cerimoniosamente, realizando milhares de mini velórios, de caixõezinhos fechados, de flores postas sobre tudo o que foi por você amado.

Ah! Com licença, vó. Os terços quebrados e santinhos também tiveram que ir. Ficaram só as orações que a senhora me ajudou a decorar. As liturgias não são mais necessárias porque agora você está junto de todos os santos, em conversa direta. Diga a eles que eu espero não ter cometido nenhum sacrilégio porque, quando for a minha vez, quero, eu também, ir para o céu.



sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Por um triz

Hugo,

Em breve completaremos dez anos desde que você se foi. Pego-me com o mesmo espanto de quando completei dez anos de vida, contemplando a exorbitância dos dez dedos nas duas mãos. Parece que foi outro dia que eu deixei os cinquenta reais debaixo do santo da vó para te ajudar com a gasolina. Você disse que não precisava e eu insisti porque sabia da sua luta naqueles dias. Nosso último encontro.

De lá para cá muita coisa mudou na minha vida. Recuperei e fortaleci a minha fé, por exemplo. Olhar para a cova é limitado demais, uma hora acabei preferindo me virar para o céu, que comportou melhor a extensão dos meus sentimentos.

Mergulhei fundo nessa coisa do luto, sem saber que voltaria de lá com tantos ganhos. A dor da finitude nos apresenta uma honestidade viciante; tenho lapidado um comprometimento com a minha verdade que às vezes me constrange diante de situações que demandam dissimulação. Mas não me importo sempre com isso porque acho que mais vale a relação que a gente tem com a gente mesmo. A dor nos ensina nossos limites, nossas necessidades, nossas curas... além de colocar todo o resto sob uma nova perspectiva. Tenho me conhecido mais e aprendido a buscar o melhor para mim, como você sempre disse que devia ser.

Também foi nos mergulhos do luto que encontrei pessoas inspiradoras, que me possibilitaram a publicação de um livro. Você ia gostar de ter me visto no rádio, na internet, na tv, no jornal. Tem sido tão incrível viver essa experiência... ela também faz parte da minha verdade. Tenho recebido mensagens de leitores que me mostram a verdade deles também. O luto tem uma beleza que eu ainda nem sei medir, “pena que dói”.

Samuel chegou quando você estava indo, talvez vocês tenham se esbarrado no caminho. É muito esquisito pensar que você não esteve aqui esse tempo todo, vendo ele crescer. Outro dia tive o ímpeto de procurar uma foto de vocês dois juntos, esquecida dessa impossibilidade. Às vezes penso que a saudade tem uma força tão grande que vira presença. Quase parece que você esteve nos aniversários, nos natais, na mesa redonda da cozinha... a fotografia não acontece por um triz.

Seria tão bom se você estivesse realmente por aqui, para eu também poder contemplar a sua vida nesses dez anos. A morte prematura é mesmo uma m*rda, mas já que não tem remédio para trazer você de volta, fico aqui com esse exercício de tentar ver o copo meio cheio, de jogar açúcar nessa limonada azeda, que é a saudade que eu tenho de você.

 

*ilustração: Joanna Concejo (joannaconcejo.blogspot.com)

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Nos limites da aldeia

Hoje assisti um filme cuja trama se passa na idade média, com dilemas de um rei, decapitações injustas em praça pública e longas cenas de violência em campos de batalha. Enquanto cabeças rolavam me detive num pensamento estranho, que venho colocar sobre o papel na tentativa de comprová-lo ou, quem sabe, de abandoná-lo. Os pensamentos estão sempre povoando minha cabeça, mas só aqueles que conseguem se deitar sobre o papel são dignos de palavra. O papel branco e inquisidor.

Enquanto cabeças rolavam tive vontade de ter nascido na idade média. Queria habitar uma aldeia e saber do mundo afora só aquilo que fosse capaz de testemunhar andando com minhas próprias pernas. Enraizada num espaço, conheceria suas pessoas, as boas e as ruins. Conheceria também as paisagens, as árvores, a vegetação, o curso do rio. Tudo me seria familiar de uma mesma forma: o vizinho, o bezerro, a alfazema.

Com pouca notícia para circular num espaço limitado, entre séculos de estagnação, ficaria atenta às notícias do vento. Leria as nuvens, a lua, o gemido dos bichos, a umidade da terra. As novidades, ora de vida, ora de morte, seriam recebidas com igual solenidade. Enquanto alguém adoecia numa casa, um broto rompia a terra do lado de fora. Tudo seria inquestionável como a sucessão das estações.

O tempo rastejante traria uma beleza diferente para todas as coisas. Das ovelhas criadas no pasto, a lã. Da lã, o tecido. Do tecido, a costura. Da costura, a saia vestida que se alisa pacientemente com a palma da mão. Mão que sova o pão, feito do trigo plantado, moído no moinho erguido por outras mãos. Mãos que tecem, que sovam, que aram, que constroem. Mãos sujas e feridas pela escassez. Tudo tão parte de tudo.

Queria sentir os pequenos prazeres, como o de concluir que as pedras que ergueram minhas paredes foram bem encaixadas. O prazer de ter um móvel ornado e acompanhar seus vincos com a ponta dos dedos. O prazer de livrar as roupas da lama, raramente. O prazer de varrer o chão batido, de pentear a terra como quem pinta um quadro. O prazer de ver a água ferver, de sentir o vapor queimando as bochechas. O prazer de colocar o alimento sobre a mesa, dentro do prato, dentro da boca.

Digo isso tudo sem nenhum conhecimento de causa. Da idade média só sei absurdos, mas enquanto as cabeças rolavam senti uma pontada de inveja. Rendi-me a insensatez desse pensamento antes que o medo me impedisse. O medo de dar corpo ao que penso.  O medo de pensar errado, de ser incoerente, de ser má interpretada. O medo de ser politicamente incorreta. O medo de ser injusta. O medo de me posicionar politicamente. O medo de falar do que eu não sei, do que não li suficientemente a respeito. O medo de não ter esgotado as bibliografias, de deixar brechas, de tocar onde não se deve. O medo de me expor.

Quem tem coragem de dizer o que sente quando o mundo inteiro é seu potencial espectador? Quem ousa sentir na inquisição das redes sociais onde cabeças rolam todos os dias?

*Imagem de Fornasetti Moves, disponível em www.yatzer.com.