Com licença, vó. Preciso ir até o seu quarto e abrir os seus armários e as suas gavetas, inclusive aquela que fica trancada. Não se preocupe, eu sei onde você guarda a chave. Vim ajudar a desfazer a sua ordem, espero que isso não te aborreça muito.
Com licença, vó. Os recibos, os
extratos e contracheques já não são garantia de nada. Até os comprovantes têm
prazo de vida. Foi bom a senhora mantê-los caso uma pane no sistema
apagasse seu histórico de trabalho ou se alguém resolvesse contradizer suas
dívidas já honradas. Agora, nada disso é mais preciso. Vou colocar tudo no
lixo, tudo bem? O papel podemos reciclar.
Com licença, vó. Eu sei que é
bonito ver as linhas de costuras todas juntas. Uma cor de linha ornando com
cada tecido, mas parece que as linhas também têm prazo de vida. Arrebentam-se
com o mínimo esforço e já não serviriam para coser nada. Os elásticos parecem
novos, mas ressecaram nos fundos das gavetas enquanto aguardavam sua convocação,
assim como as rendas e os botões. Falando em botões...
Com licença, vó. Eu sei que os
botões que estão no vidro são os seus preferidos. É uma pena que não houve a
oportunidade de usá-los. Talvez ainda sirvam para alguém, não sei se os botões
têm prazo de vida. Pode ser que eles durem mais do que todas as coisas e, sendo
assim, ainda sejam úteis, mas para uma satisfação que não mais será sua. Acho
que posso doá-los, não é mesmo?
Com licença, vó. Agora já é
demais! Essas maquiagens vencidas devem até fazer mal à pele. Repara só, como
esses vidros estão melados e cheiram mal. Seus frascos e poções mágicas - misturas
de própolis, babosa e águas boricadas - você jura serem os remédios para todos os
males. Mas já não há mais dores nem corpo para serem tratados.
Com licença, vó. Vou levar essas
fotos para mim. Gostos dessas, de um tempo anterior a nós, quando você era moça
e toda a sua longa vida se aninhava dentro do seu sorriso. Também vou levar o
carimbo com o seu nome para guardar do lado do meu, nossas duas identidades
juntinhas na gaveta, confirmando quem somos, ou quem fomos.
Com licença, vó. Os sacos já
estão cheios e eu também me espanto em ver tudo ir embora. Mas, veja, se eu não
fizer isso agora, talvez outra pessoa o faça com a urgência pelos espaços e sem
reverência. Dispenso cada coisa cerimoniosamente, realizando milhares de mini velórios, de caixõezinhos
fechados, de flores postas sobre tudo o que foi por você amado.
Ah! Com licença, vó. Os terços
quebrados e santinhos também tiveram que ir. Ficaram só as orações que a
senhora me ajudou a decorar. As liturgias não são mais necessárias porque
agora você está junto de todos os santos, em conversa direta. Diga
a eles que eu espero não ter cometido nenhum sacrilégio porque, quando for
a minha vez, quero, eu também, ir para o céu.
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