Ele da área das ciências políticas, eu das artes literárias. Vira e mexe debatemos sobre o valor das nossas escolhas acadêmicas e ele pensa sair vitorioso quando toca no ponto “utilidade pública”. Devo concordar que compreender os governos que regem as sociedades desde sempre tem importância direta na vida de todos nós. Mas eu, cá com meus botões, me contento em segredo com o trunfo da literatura.
Pessoalmente, acredito que o grande valor da literatura é o de frear a inércia da vida moderna. Ao brincar com a linguagem, ao desautomatizar a gramática, o texto literário nos obriga a parar, olhar para o distante, e pensar. Eu conheço essa palavra, sei o que significa, mas o que é que ela está fazendo AQUI? E tentando decifrar esses porquês a mente expande, ganhamos consciência da linguagem. E toda experiência humana perpassa a linguagem.
Recentemente tive a oportunidade de acompanhar meu marido em uma missão estudantil pelas regiões de conflito no Oriente Médio. Foram dezoito dias, cinco países, vinte e uma cidades. Pontos turísticos espremeram-se entre os tantos encontros que tivemos com autoridades, professores, jovens e famílias locais. Nossa “missão” era a de simplesmente ouvir o que essa gente sofrida tinha urgência para desabafar. Ouvi depoimentos que ainda latejam em meu coração. Há tanta injustiça no mundo que a gente nem desconfia.
Em Ajlun, um vilarejo jordaniano, descemos do ônibus e andamos por longos minutos sobre solo seco e sob céu azul de inverno até chegar a casa de Fátima. Colaboradora da ONG que nos proporcionou a viagem, Caminho de Abraão, Fátima nos aguardava para um almoço típico em sua modesta casa. Quando chegamos ela estava no quintal, que era na verdade uma montanha inteira. Sovava a massa do pão mais saboroso que já comi e deixou que eu experimentasse o artifício. Tentei imitá-la abrindo a massa na palma da mão cheia de puro azeite e ela ria debochada do meu inútil esforço.
Almoçamos todos no chão, como de costume árabe, um verdadeiro banquete. Para digestão, o típico chá e uma sessão de perguntas para a família de Fátima, que a essa altura estava sentada num canto, coberta pelo seu véu e nem por isso menos exuberante. Perguntei para o guia local o que as mulheres dali faziam como entretenimento. Tive que refazer a pergunta, que não pareceu muito clara ao intérprete. Pedi que nossa anfitriã respondesse, mas antes que ela terminasse a primeira frase foi logo interrompida pelo homem da família que respondeu por ela: as mulheres se divertem lendo o corão e cuidando da casa.
Em sinal de respeito, guardamos nossa indignação para a reunião de mais tarde. Todas as noites, nos reuníamos no saguão dos hotéis para refletirmos sobre as experiências vividas durante o dia. O viés das discussões era sempre político, dado ao fato de que o grupo de estudantes era do curso de Relações Internacionais.
Ainda na casa de Fátima, enquanto o grupo elaborava mais perguntas e fumava o narguile, fiquei com aquela resposta entalada na garganta. Era inaceitável que uma mulher com a vida latente nas bochechas rosadas pudesse se divertir assim, lendo o corão e cuidando da casa. Pensei em quanta sorte eu tive quando nasci no Brasil. Mas, como é mesmo que eu me divirto? Levei um susto quando não encontrei a resposta na ponta da língua. Como foi a última vez em que me diverti no meu tempo livre? Fui ao shopping e delirei por ter encontrado a sandália dos meus sonhos com setenta por cento de desconto. Só isso? O que mais eu faço com toda a imensa liberdade ocidental de que dispoho? Pensa Marina, pensa mais.
Só isso.
Não sei se mais triste pela Fátima ou por mim, senti que poderia chorar o suficiente para umedecer toda aquela montanha. Quando chegou a hora de ir embora, dei um abraço longo e demorado naquela que parecia ser uma amiga de velhos tempos, conhecedora dos meu mais profundos segredos. Sem intermédio do idioma, ficamos assim, olhando uma para outra e de mãos dadas. Quando a palavra falta a emoção sai pela linguagem do corpo.
Eu conhecia aquele brilho nos olhos, estava diante de uma mulher exatamente como eu, tive certeza. Mas o que ela fazia ali, com aquelas roupas, naquele quase deserto? Fui obrigada a parar, olhar para o distante, e pensar. Pensar as minhas roupas, pensar a minha casa, pensar a minha vida. Pensar que “felicidade” é uma palavra misteriosa. Pensar na irmandade malcriada que é a humanidade. Pensar em Deus.
Fátima foi minha encantadora palavra poética.
Esse foi o melhor texto seu que eu já li! E talvez eu pudesse dizer isso, cronologicamente ou não, de cada um que vc postou aqui no blog. O fato é: sua escrita está cada dia melhor. Parabéns!!!!!!
ResponderExcluirAiai.. agora eu também não paro de pensar no que eu tenho feito pra me divertir! Acho que ainda to meio "stuck" com os sapatos também! Ah! E concordo plenamente com a Kerol! Amei o texto, o assunto, a escrita, e já amo também a doce Fátima! E quero ler todos os textos do que será um diário de bordo inesquecível!!! Parabéns!!!
ResponderExcluirsou nova aqui e não posso deixar de comentar este lindo texto, porque eu mesma tenho me questionado sobre isso...
ResponderExcluirparabéns!
Aposto que Fátima tem formas ocultas de se divertir, que o marido mal percebe...
ResponderExcluirBenvinda de volta!
Que lindo texto, Marina!
ResponderExcluirE, sen não lhe faltar nada muito essencial, tenho certeza de que Fátima se diverte muito mais do que podemos ousar imaginar.
Bem que vc podia nos contar mais desta viagem, né? Interessantíssima!
Beijos
Ah! Que loucura. Uma das últimas coisas que fiz no meu ex-trabalho foi editar um texto sobre essa viagem. Fiquei encantada com a oportunidade que esses estudantes (e você!) tiveram. Conta mais?!
ResponderExcluirEnquanto isso, vou voltar aqui pros meus textos de Egito/Líbia/Bahrein e pensar na minha liberdade ocidental....
um beijo,
Mari
Ai, Ma, o teu texto dói de tão lindo! Imagino quantas reflexões maravilhosas você deve ter feito diante de experiências de vida tão intensas e com esta sua imensa sensibilidade. Acho que você se diverte assim: fazendo poesia da vida. Não páre, amiga!
ResponderExcluirQue linda reflexão, Marina! Confesso que ao ler o seu texto eu me senti como vc: indignada por Fátima, mas depois indignada por mim mesma.
ResponderExcluirSerá que temos realmente liberdade? Eu penso que apenas mudamos os grilhões que nos prendem, raras são as pessoas realmente livres.
Não penso que isso seja um mal, de todo, mas penso que por isso mesmo não podemos julgar uns aos outros e pensar que somos mais, que somos melhores.
Na realidade somos os mesmos, vivemos as mesmas vidas, apenas em cenários diferentes.
Beijos,
Nine
www.minhapequenaisis.blogspot.com
www.nafronteirasul.blogspot.com
Meu Deus do céu! é isso!!!!!!!!!
ResponderExcluiré isso o que eu procurava pra entender a mesquinharia da vida que a gente leva, Marina. Vc encontrou. E transcreveu lindamente aqui. Fiquei arrepiada lendo isso e fui levada diretamente ao Egito, qd conheci mulheres nômades do deserto. cara, é isso!
obrigada pelo texto.
deveria estar num jornal público. pra todo mundo ler.
já estava com saudade.
ps. esse pao eu conheco, é mt bom mesmo :-)
Me sinto como a Fátima deve se sentir. Enclausurada e livre, dentro da própria cabeça.
ResponderExcluirwww.maedeopiniao.blogspot.com
Mexeu comigo, viu ?
ResponderExcluirAdorei isso, Marina. Continue a nos contar!
ResponderExcluirMe emocionei.
Beijos.
Muito bem escrito, muito lindo. Bom aprender com gente que faz a diferença nesse mundo!
ResponderExcluirCheguei aqui através da Nina: voces escrevem lindamente como eu disse a ela.
Bom fds.
Bjs.
www.trocandodepele.com
que lindo Marina! Profundo! Coloca mais fotos da sua viagem!!!! Pelo visto essa viagem ainda vai render mais posts... Tanto tempo sem aparecer!!!
ResponderExcluirSenti sua falta querida!!!
Beijossssssss!
Ai eu quero uma fotinho da sua princesa!!! 6 anos já! Uma mocinha... E o segundo vem?! Hahaha!!! Difícil essa pergunta, né?! Beijossssss!!!
Suas palavras estao aqui flutuando no ar.
ResponderExcluirSaudades. Como? Nao sei, mas sim!
Beijos
Vim parar no seu blog através do Frango com Banana, procurando uma receita pro almoço de hoje. A comida quase queimou, porque eu ficava no micro lendo os dois blogs, ao invés de na cozinha. Adorei seus post, e o Adorável Intruso 2 me fez pensar muito na relação que eu, adulta, tenho hoje com minha mãe, quando vc fala de "o que iremos dizer quando nossos corpos maduros se abraçarem". Parabéns pelo blog e pelo lindo estilo de escrita
ResponderExcluirQue texto lindo e envolvente...
ResponderExcluirAdorei o blog.
Querida Marina!
ResponderExcluirSou a mais nova leitora do Seu Blog! Tenho que te agradecer por me ajudar em um dia cinzento com palavras tão amáveis!então, como eu também tenho um blog decidi dedicar um dos meus posts para você! O meu endereço é www.petitbeca.blogspot.com beijinhos e uma ótima semana para ti e a sua pequena!
Com carinho Rebeca
primeira vez que eu entro aqui e já me deparo com este texto lindo. lembrei da escritora Thrity Umrigar. e voltarei aqui muitas vezes. parabéns!
ResponderExcluirQuerida amiga...amei seu texto!!! bjoooo
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