sábado, 28 de agosto de 2010

Inferno Astral


“Mamãe, eu vou nadar nesde aqui até você”.  Quando percebi o erro abri um sorriso e logo cutuquei seu pai para ele não corrigi-la.
Há tempos estamos lhe ensinando...  a não falar como o “Cebolinha”, a pronunciar o ch corretamente, a usar os plurais e fazer as conjugações corretas. Porque quando você errava as pessoas diziam que era hora de lhe levar ao fonoaudiólogo. E porque devíamos ser bons pais, ensinamos a você como tudo deve ser.
Também ensinamos você a escovar os dentes e a dormir sozinha. Ensinamos que é certo guardar os brinquedos e as roupas na gaveta. Explicamos como ligar o computador e a televisão. Ensinamos as noções básicas de higiene e as boas maneiras.
Você, boa aluna, aprendeu rápido. Tão mais rápido do que eu pudesse imaginar. Lembrar dos seus primeiros anos de vida já é falar de antigamente, porque você aprendeu tantas coisas e mudou. Sinto nitidamente que já mudamos de capítulo neste que será o livro da sua vida.
Diante de suas perfeições fiquei assim, num misto de orgulho e saudades. Então você, piedosa, dá-me de presente um nesde. Que ninguém se atreva a corrigi-la, minha eterna pequena. 

Não julgue mal essa mãe tristonha, porque o amor que sinto por você é o mesmo. Nesde sempre. Até sempre.

domingo, 15 de agosto de 2010

Em defesa de um marido vegetariano

Era mesmo difícil ser vegetariano em meio à alcatéia. O pai caçava, o avô caçava, o bisavô caçava e, para piorar as coisas, o irmão caçula caçava. Depois de ser apanhado pela terceira vez com o focinho manchado de frutas do bosque ele foi praticamente obrigado a se afastar do bando.

Por que eu? – uivava ele floresta afora, inconformado com seu destino infeliz. Passando por uma dolorosa fase de autonegação, ficou dias sem comer uma folhinha sequer (porque tentar um bifinho cru já estava fora de cogitação há anos). Seu estômago vazio colado à espinha dorsal sentiu de longe um cheiro bom de bolo de cenoura com calda de chocolate, de brownie com nozes, de torradas com geléia de amoras, de pudim de leite, de biscoitinhos de nata, de torta de maçã. 

Arrepiou até o último pelo do rabo e a boca seca voltou a salivar em abundância. Lembrando do seu aspecto, tentou fazer uma cara simpática, lambeu as patas e aproximou-se do banquete. Perguntou aonde ia aquela menina com tantas guloseimas e, apesar da vulnerabilidade dela, não foi capaz de saciar-se ali mesmo. 

Correu para o destino da menina. E porque também não podia fazer mal àquela frágil velhinha, colocou-a cuidadosamente no armário. Até forjou um assento com cobertores dobrados pra senhora ficar mais confortável. Aproveitou para pegar uns trajes e se disfarçar de vovozinha. 

Tudo bem que mentir não era bem a dele, mas a fome + rejeição já haviam consumido sua última dose de ética. Deitou na cama e aguardou. A menina chegou serelepe e sentou-se à cama. 

_ Mas por que estas orelhas tão grandes?

Quem é que já chega falando mal da orelha da própria avó? Nem bênção essas crianças pedem mais, pensou ele com indignação sem prever a tragédia que se aproximava. 

_ Mas por que estes olhos tão grandes?

Ora, ora... que menina curiosa!

_ Mas por que este nariz tão grande?

Neste momento seus olhos – grandes olhos – já estavam lacrimejando. Ele já estava cansado de saber que era alma de outro bicho nascido em espécie errada. Ele mesmo nunca gostou daquelas orelhas pontudas e achava o nariz realmente um exagero. Ela não precisava nada ficar jogando isso tudo na fuça dele. A vida já não andava nada fácil, poxa. 

Foi então que ela lhe perguntou sobre os dentes. Os dentes! O principal símbolo de sua vergonha, os quais ele tentou dolorosamente gastar mastigando pedras à beira do rio. Até a um lobo infeliz resta um pouco de dignidade. Aquilo já era tortura demais. 

Numa explosão de raiva saltou da cama, rasgando as roupas que trajava e revelando sua enorme massa peluda e musculosa. Pulou sobre a menina que usava um estúpido gorro vermelho e puxou-lhe a cesta de doces. A menina, além de cruel e curiosa, era uma digna soprano, cujos berros buscaram um caçador que passava ali.

Caçador este que, com toda a ignorância da humanidade concentrada num dedo-no-gatilho, já entrou na casa e, julgando pelas aparências, deu cabo do animal. Gran finale injustamente aplaudido por gerações e gerações até os dias de hoje.

E este foi o trágico fim do lobo mau, que morreu sem comer uma migalha sequer daquele bolo de cenoura.


segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Férias sem filhos


Vivi a primeira semana de maternidade anestesiada pela emoção de ser mãe. Não me lembro das dores do parto, que a essa altura já nem sei mais se de fato existiram. Os dias eram marcados não mais pelo ir e vir do sol, mas pelas mamadas e choros que logo se dispuseram em rotina. Foi quando no segundo sábado depois do nascimento da minha filha acordei com o já esperado choro da madrugada. Mas ué? Não é sábado? Então me dei conta de que tinha assumido uma tarefa sem fim, a qual eu cumpriria pela vida toda, sem recessos.
O tempo, amigo camarada, apresentou-me o costume que me deixou assim, acostumada. Parei de fazer as contas das quantas repetidas vezes trocava fraldas, entendi que tudo bem se não recebesse um muito obrigado depois de levantar no meio de uma noite de inverno para fazer uma mamadeira. Aliás, descobri o significado das palavras incondicional e altruísmo. E de tanto que o tempo, o costume e eu andávamos juntos, ficou até estranho pensar na vida antes da maternidade. O que será que eu fazia com tanta liberdade?
Quase seis anos depois resolvemos me dar férias. Dez dias para eu fazer seja lá o que for que eu fazia antes de ter um filho. Vai ser bom, concordamos sem que eu entendesse o porquê daquele nó na minha garganta. Vejo minha pequena no taxi indo embora com a vó, as duas felizes da vida. Meu sorriso agüenta só até a esquina. A dor é tão grande que vira lágrima, penetra os músculos, rompe os nervos.
Todos os livros que eu leria, os trabalhos que adiantaria, os cinemas que assistiria, as caminhadas que faria, todos os planos se transformam em um par de olhos mirando o teto e um grande vazio na existência. Concluo que devo ter sido muito infeliz até ser mãe.
E o danado do tempo aparece de repente e agora me traz a novidade. Alegre novidade que se acomoda nos buracos vazios que cavou a falta. Tomamos, eu e Ele, uma dose cavalar de romance e conseguimos, depois de um impensável esforço, aproveitar plenamente nossas férias. E como foi bom... Trouxemos na mala um punhado de ânimo e uma coleção de saudades transformadas em presentes.
E assim vou percebendo, mais uma vez, que tudo tem seu tempo e seu preço.