Era mesmo difícil ser vegetariano em meio à alcatéia. O pai caçava, o avô caçava, o bisavô caçava e, para piorar as coisas, o irmão caçula caçava. Depois de ser apanhado pela terceira vez com o focinho manchado de frutas do bosque ele foi praticamente obrigado a se afastar do bando.
Por que eu? – uivava ele floresta afora, inconformado com seu destino infeliz. Passando por uma dolorosa fase de autonegação, ficou dias sem comer uma folhinha sequer (porque tentar um bifinho cru já estava fora de cogitação há anos). Seu estômago vazio colado à espinha dorsal sentiu de longe um cheiro bom de bolo de cenoura com calda de chocolate, de brownie com nozes, de torradas com geléia de amoras, de pudim de leite, de biscoitinhos de nata, de torta de maçã.
Arrepiou até o último pelo do rabo e a boca seca voltou a salivar em abundância. Lembrando do seu aspecto, tentou fazer uma cara simpática, lambeu as patas e aproximou-se do banquete. Perguntou aonde ia aquela menina com tantas guloseimas e, apesar da vulnerabilidade dela, não foi capaz de saciar-se ali mesmo.
Correu para o destino da menina. E porque também não podia fazer mal àquela frágil velhinha, colocou-a cuidadosamente no armário. Até forjou um assento com cobertores dobrados pra senhora ficar mais confortável. Aproveitou para pegar uns trajes e se disfarçar de vovozinha.
Tudo bem que mentir não era bem a dele, mas a fome + rejeição já haviam consumido sua última dose de ética. Deitou na cama e aguardou. A menina chegou serelepe e sentou-se à cama.
_ Mas por que estas orelhas tão grandes?
Quem é que já chega falando mal da orelha da própria avó? Nem bênção essas crianças pedem mais, pensou ele com indignação sem prever a tragédia que se aproximava.
_ Mas por que estes olhos tão grandes?
Ora, ora... que menina curiosa!
_ Mas por que este nariz tão grande?
Neste momento seus olhos – grandes olhos – já estavam lacrimejando. Ele já estava cansado de saber que era alma de outro bicho nascido em espécie errada. Ele mesmo nunca gostou daquelas orelhas pontudas e achava o nariz realmente um exagero. Ela não precisava nada ficar jogando isso tudo na fuça dele. A vida já não andava nada fácil, poxa.
Foi então que ela lhe perguntou sobre os dentes. Os dentes! O principal símbolo de sua vergonha, os quais ele tentou dolorosamente gastar mastigando pedras à beira do rio. Até a um lobo infeliz resta um pouco de dignidade. Aquilo já era tortura demais.
Numa explosão de raiva saltou da cama, rasgando as roupas que trajava e revelando sua enorme massa peluda e musculosa. Pulou sobre a menina que usava um estúpido gorro vermelho e puxou-lhe a cesta de doces. A menina, além de cruel e curiosa, era uma digna soprano, cujos berros buscaram um caçador que passava ali.
Caçador este que, com toda a ignorância da humanidade concentrada num dedo-no-gatilho, já entrou na casa e, julgando pelas aparências, deu cabo do animal. Gran finale injustamente aplaudido por gerações e gerações até os dias de hoje.
E este foi o trágico fim do lobo mau, que morreu sem comer uma migalha sequer daquele bolo de cenoura.