quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Fátima


Ele da área das ciências políticas, eu das artes literárias. Vira e mexe debatemos sobre o valor das nossas escolhas acadêmicas e ele pensa sair vitorioso quando toca no ponto “utilidade pública”. Devo concordar que compreender os governos que regem as sociedades desde sempre tem importância direta na vida de todos nós. Mas eu, cá com meus botões, me contento em segredo com o trunfo da literatura.

Pessoalmente, acredito que o grande valor da literatura é o de frear a inércia da vida moderna. Ao brincar com a linguagem, ao desautomatizar a gramática, o texto literário nos obriga a parar, olhar para o distante, e pensar. Eu conheço essa palavra, sei o que significa, mas o que é que ela está fazendo AQUI? E tentando decifrar esses porquês a mente expande, ganhamos consciência da linguagem.  E toda experiência humana perpassa a linguagem. 

Recentemente tive a oportunidade de acompanhar meu marido em uma missão estudantil pelas regiões de conflito no Oriente Médio. Foram dezoito dias, cinco países, vinte e uma cidades.  Pontos turísticos espremeram-se entre os tantos encontros que tivemos com autoridades, professores, jovens e famílias locais. Nossa “missão” era a de simplesmente ouvir o que essa gente sofrida tinha urgência para desabafar. Ouvi depoimentos que ainda latejam em meu coração. Há tanta injustiça no mundo que a gente nem desconfia.

Em Ajlun, um vilarejo jordaniano, descemos do ônibus e andamos por longos minutos sobre solo seco e sob céu azul de inverno até chegar a casa de Fátima. Colaboradora da ONG que nos proporcionou a viagem, Caminho de Abraão, Fátima nos aguardava para um almoço típico em sua modesta casa. Quando chegamos ela estava no quintal, que era na verdade uma montanha inteira. Sovava a massa do pão mais saboroso que já comi e deixou que eu experimentasse o artifício. Tentei imitá-la abrindo a massa na palma da mão cheia de puro azeite e ela ria debochada do meu inútil esforço.

Almoçamos todos no chão, como de costume árabe, um verdadeiro banquete. Para digestão, o típico chá e uma sessão de perguntas para a família de Fátima, que a essa altura estava sentada num canto, coberta pelo seu véu e nem por isso menos exuberante. Perguntei para o guia local o que as mulheres dali faziam como entretenimento. Tive que refazer a pergunta, que não pareceu muito clara ao intérprete. Pedi que nossa anfitriã respondesse, mas antes que ela terminasse a primeira frase foi logo interrompida pelo homem da família que respondeu por ela: as mulheres se divertem lendo o corão e cuidando da casa.

Em sinal de respeito, guardamos nossa indignação para a reunião de mais tarde. Todas as noites, nos reuníamos no saguão dos hotéis para refletirmos sobre as experiências vividas durante o dia. O viés das discussões era sempre político, dado ao fato de que o grupo de estudantes era do curso de Relações Internacionais. 

Ainda na casa de Fátima, enquanto o grupo elaborava mais perguntas e fumava o narguile, fiquei com aquela resposta entalada na garganta. Era inaceitável que uma mulher com a vida latente nas bochechas rosadas pudesse se divertir assim, lendo o corão e cuidando da casa. Pensei em quanta sorte eu tive quando nasci no Brasil. Mas, como é mesmo que eu me divirto? Levei um susto quando não encontrei a resposta na ponta da língua. Como foi a última vez em que me diverti no meu tempo livre? Fui ao shopping e delirei por ter encontrado a sandália dos meus sonhos com setenta por cento de desconto. Só isso? O que mais eu faço com toda a imensa liberdade ocidental de que dispoho? Pensa Marina, pensa mais. 

Só isso. 

Não sei se mais triste pela Fátima ou por mim, senti que poderia chorar o suficiente para umedecer toda aquela montanha. Quando chegou a hora de ir embora, dei um abraço longo e demorado naquela que parecia ser uma amiga de velhos tempos, conhecedora dos meu mais profundos segredos. Sem intermédio do idioma, ficamos assim, olhando uma para outra e de mãos dadas. Quando a palavra falta a emoção sai pela linguagem do corpo. 

Eu conhecia aquele brilho nos olhos, estava diante de uma mulher exatamente como eu, tive certeza. Mas o que ela fazia ali, com aquelas roupas, naquele quase deserto? Fui obrigada a parar, olhar para o distante, e pensar. Pensar as minhas roupas, pensar a minha casa, pensar a minha vida. Pensar que “felicidade” é uma palavra misteriosa. Pensar na irmandade malcriada que é a humanidade. Pensar em Deus. 

Fátima foi minha encantadora palavra poética.