segunda-feira, 19 de maio de 2014

Valores

Não me considero uma pessoa politizada. Admito acompanhar apenas superficialmente o que acontece no cenário político nacional e raramente expresso minha opinião sobre o assunto, apesar de cumprir com minhas obrigações eleitorais de maneira – espero - consciente. Talvez por ser casada com um cientista político, aprendi o quanto é fácil cair na armadilha das generalizações partidárias, do julgamento sem fundamentação real, das manipulações midiáticas.  Acabei assumindo uma postura um tanto contemplativa: prefiro digerir as informações sobre o que acontece no palácio do planalto no aconchego de mim mesma. Até porque não gosto de polêmicas.
Mas hoje resolvi dar meu grito, embora minhas críticas não sejam exclusivamente aos políticos.
Eis que ontem escuto um grupo de mães – classe média alta paulistana – conversando sobre táticas de como furar filas na Disney. As estratégias faziam valer dos excelentes recursos que os parques criaram para atender visitantes com necessidades especiais (deficientes, pessoas com problemas de saúde, ou acompanhados de bebês e idosos, por exemplo). Uma delas ainda sugeriu que, caso algum funcionário do parque pedisse comprovação das limitações alegadas, bastava engrossar a voz. Segundo ela, americanos morrem de medo de processos e preferem sempre evitar conflitos com os clientes. Fiquei imaginando, cá com meus botões, o orgulho das crianças ao olharem com admiração para aquelas mães super espertas, capazes de economizar horas e horas de filas pelo bem da diversão familiar...
O episódio me fez lembrar a polêmica Rosely Sayão que apontou, em certa palestra sobre “filhos e internet” a questão da censura no Facebook. A maioria da plateia mostrou-se surpresa ao saber que a rede social é vetada para menores de 13 anos, até porque grande parte daqueles pais tinha filhos de idades inferiores conectados ao “fêice”. O debate seguiu caloroso sobre os riscos da internet e a mudança de comportamento que a exposição virtual vem causando nos jovens, sobretudo na questão da falha no julgamento do que deve ser público ou privado. Alguns pais, muito incomodados com o dedo no nariz que a psicóloga apontou naquela noite, defenderam sua postura permissiva alegando acompanhar os passos dos filhos na internet (ãham). Então Rosely tocou numa questão crucial, que à primeira vista parecia ser acessória: quando permitimos que nossos filhos mintam o ano de nascimento para fazer um cadastro no Facebook estamos dizendo: aqui existe essa regra, mas não há nada demais em ignorá-la.
E os exemplos são muitos. A faixa de pedestre está lá na frente e a gente só quer ir ali, no banco que fica no meio do quarteirão. Não tem problema atravessar. O restaurante está distribuindo uma bexiga por cliente, mas tem um monte sobrando e ninguém está tomando conta. Pega duas. Pega três. Criança até cinco anos não paga. Você tem seis, mas ninguém vai perceber, passa logo por debaixo da catraca. Esse filme não é pra sua idade, mas que bobagem, isso é filme de criança sim. Vamos pedir um refrigerante só. Aqui tem refil e você toma comigo. Não pode beber, mas tenho um amigo que faz uma identidade falsa perfeita. Bebi, mas foi só um pouco, não tem problema dirigir. Se tiver blitz eu posso me negar a soprar o bafômetro. Putz, atropelei alguém. Arranquei um braço, mas ninguém viu, joga ali no rio. Isso é proibido, mas é bom, fuma aí. Cheira aí. Ô autoridade, toma aqui uma grana para a cervejinha. Livra a minha barra, parceria? A merenda custa 100 reais, mas ninguém confere, coloca aí que ela custa 300. O dinheiro é público, mas tem tanto, ninguém vai notar se eu colocar um bocado aqui na minha conta.
Quem já comprou meia entrada sem ter carteira de estudante certamente ficará ofendido ao ser  incluído na laia dos políticos corruptos. Acontece que a falha, nos dois casos, é exatamente a mesma: falta de honestidade.  Não é honesto quem deixa de devolver o troco que veio a mais da mesmíssima forma que não é honesto quem superfatura uma obra pública.
Enfrentar uma fila não faz de você uma pessoa otária, mas sim honesta! E ser honesto é uma coisa boa, acreditem. Até porque um dia você poderá estar naquela mesma fila, com um bebê pesado no colo ou setenta anos nas costas e precisará – de verdade – do atendimento preferencial. Não importa que ninguém esteja vendo em que fila você vai entrar, não interessa se não há controle, se não há câmeras registrando seu ato falho. O que importa é que você estará fazendo a coisa certa e que seu filho, acompanhando todos os seus movimentos com um brilho nos olhos, poderá, um dia, ser o presidente do Brasil que a gente tanto quer.


*Texto originalmente publicado no Minha Mãe que Disse, em outubro de 2013.

sábado, 10 de maio de 2014

Minha vó

Minha vó é um encanto de pessoa. Há quem diga que foram os netos que amansaram a Dona Therezinha. Testemunhas oculares garantem que ela foi uma mãe ponta firme, sem paciência para frescuras e dona de uma psicologia do terror impiedosa. 

Meus tios e minha mãe hoje riem, embora com algumas sequelas, ao contar dos medos da infância incentivados pela própria mãe. Dona Therezinha sempre contava com a ajuda de um "homem do saco" ou de uma "mula sem cabeça" para fazer as crianças irem logo para cama. Se no meio da noite algum filho viesse incomodá-la, ainda com medo das ameaças fantásticas, ela logo cortava o chororô: "Deixa de ser mentecapto que essas coisas não existem".

Nem sei se acredito nesses testemunhos, porque a Vó Therezinha que eu conheço sempre foi muito diferente disso. Coisa boa era dormir no quarto dela, as férias inteiras. Ela preparava os colchões com os lençóis estampados do "Amar é" que até hoje existem, apenas com alguns remendos. Os travesseiros eram ela mesma quem fazia, com paina vinda não sei de onde e fronhas costuradas na sua máquina de pedal. Na bainha ela marcava as nossas iniciais à caneta, que era para ninguém inventar de usar o que tinha sido feito especialmente para nós, os netos. Antes de dormir ela sempre rezava e falava do anjo da guarda e o resto da noite era regida pelo seu ronco suave e ritmado. 

Vaidade nunca foi o forte da minha mãe. Culpa da matriarca, ela reclama, que vestia qualquer roupa que servisse nos filhos, não importava se o conjunto ornasse ou não. Era botinha para endireitar o pé com vestido colorido e pronto. Cabelo comprido era o sonho da minha tia, cujas madeixas eram mantidas sempre bem curtas, com franjinha no meio da testa, para evitar nó e piolho. 

Minha vó e eu, porém, nunca tivemos esse tipo de contrariedade: somos cordatas. Todas as férias ela pegava uma pilha de revistas Manequim e deixava eu escolher o modelo que eu quisesse. Mais gostoso ainda era escolher as estampas entre os quilômetros de tecido que ela armazena no guarda roupa junto com milhares de novelos de lã, usados para tecer agasalhos. Isso sem mencionar as tranças embutidas que só ela sabe fazer enquanto elogia o colosso de cabelo que eu tive a sorte de ter. 

Sorte mesmo é receber um elogio dela. Está aí uma coisa que parece nunca ter mudado: Dona Therezinha só diz o que pensa. Você nunca ouvirá dela algo que foi dito "só para agradar". Se alguém liga feliz para contar de uma gravidez, por exemplo, ela reage sem pudores: "Ah... coitada..." Isso porque sabe dos sacrifícios que só um filho pode exigir da vida de uma mulher. Se depois a mãe ainda tem a coragem de vir trazer o bebê para minha vó conhecer, corre o risco de ouvir um "Que coisa medonha!", ou então testemunhar um silêncio com uma sobrancelha arqueada - que é mais ou menos a mesma coisa. Ela é pura honestidade.

O que eu sei é que eu morro de admiração pela minha vó. Ela sabe de todas as coisas da cidade, da TV, da natureza e da vida. Não sei como consegue, de dentro da sua casa de sempre, sintonizar de tal forma com o mundo todo. Às vezes acho que ela guarda uma bola de cristal no armário. Armário este fechado à sete chaves, que só espio de vez em quando e enxergo um universo dentro. Ela diz que a gente só vai mexer ali quando ela morrer, então a gente controla o desejo e a curiosidade. 

O armário é apenas um dos seus mistérios. Dona Therezinha tem hábitos de feiticeira. Pra qualquer sintoma ela vai no terreiro e volta com um punhado de folhas para um chá milagroso. Tem receita para tudo, até para dor de cotovelo. Tem jeito para atrair passarinho e para espantar bicho indesejado. Tem novena para conseguir o que quer que seja e uma simpatia infalível para encontrar objetos perdidos que deixa São Longuinho no chinelo.  Na hora de ir embora das férias ela sempre fica de pé na calçada, entoando suas rezas baixinho e envolvendo o nosso carro com a energia protetora dos seus santos. 

Ela sempre sabe o que convém e o que não convém nessa vida e eu não hesito em pedir seus conselhos. Tão bom é poder conversar com ela, principalmente sentadas na mesa da cozinha, eternamente posta. Se ela foi uma mãe durona, eu não sei. O que eu sei é que minha vó é a melhor que eu poderia ter. 




sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Papo de doido

A maternidade é um estado de loucura. De acordo com o novo pai dos burros, Sr. Wikipédia,  loucura é uma "condição da mente humana caracterizada por pensamentos considerados anormais pela sociedade". Pois bem, a condição materna nos tira dos trilhos socialmente aceitáveis. Fato. 

Não bastasse todas as mudanças físicas - o quadril que alarga, os peitos que caem, a pele que cede - a gente fica meio tãn-tãn da cabeça. É como se passássemos a obedecer uma nova lógica de pensamento, algo cem por cento comprometido com a função de mãe.

Outro dia transbordei minha xícara de café enquanto adicionava açúcar contando a cada colherada: "Trinta. Sessenta. Noventa. Cento e vinte. Cento e cinquenta. Cento e oitenta. Duzentos e dez". Exatamente a medida para a mamadeira do meu caçula. 

No restaurante, depois da pizza, meu marido pediu um creme de papaia de sobremesa e eu automaticamente procurei uma fralda suja para trocar. Porque (né?) assim que seu bebê entra na fase das frutinhas cocô passa a cheirar mamão e vice-versa. 

É uma sintonia louca... um estado de alerta que não desliga nem na hora de dormir. O que não significa que  a gente não durma um sono pesado. A canseira é tanta que dois segundos depois de cair na cama você já está em estado alfa de relaxamento. Podem usar uma britadeira no andar de cima que você não acorda. Mas basta seu filho dar uma suspirada no quarto dele e você já está de pé. 

Sei que essa insanidade toda exaure. Uma amiga, de tão feliz que estava porque o filho finalmente havia dormido, me fez um interurbano só para dizer - toda satisfeita - que ia fazer um cocô bem tranquila. Escatologias, aliás, são recorrentes na fala materna. Coisa de doido.

Depois de dez anos sintonizada vinha sentindo uma necessidade extrema de mudar de estação, de brincar de normal em algum lugar. Longe, de preferência. Longe o suficiente para meu cérebro não liberar doses de adrenalina toda vez que ouvisse um choro de criança. 

Aproveito uma oportunidade e vou à agência de turismo. Destino decidido, quero esse voo aqui. "Mas senhora", diz a agente, "por cem dólares você pode fazer um voo direto que reduz sete horas do tempo total da viagem". Não, minha querida, você não está entendendo. Me dê uma escala em Sidney, se possível.

Imagine que "céu" alguém chegar e te dizer: senta aí e fica. Bonitinha. Sentadinha. Pode ouvir uma música, pode escolher um filme (o último lançamento que você viu no cinema provavelmente estará na sessão dos clássicos), pode jogar tetris e pode dormir. A gente traz sua comida, sua aguinha e uma venda de olhos, se precisar. 

Durante o voo a coisa mais séria que vão exigir de você é uma decisão entre "coke" e "orange juice". Algo absolutamente razoável para uma mente insana. 



sábado, 8 de fevereiro de 2014

Férias de verdade

Todo fim de ano eu quase cruzo aquela linha tênue entre a sanidade e a loucura. Depois de um ano inteiro de compromisso sucedendo compromisso e um relógio rápido no ponteiro, entro na inércia da tensão. Mesmo deitada para dormir sinto o coração acelerado, com uma sensação crônica de que tenho algo para fazer - e com urgência! A isso se junta a obrigação dos presentes de natal, as provas finais das crianças, o décimo terceiro para acertar, os exames de rotina para fazer e aquela arrumação geral nos armários que jurei não postergar outra vez. Não fosse o calendário estar por uma folha e o ano novo gritando sua promessa de recomeço, eu endoidava na certa. 

Finalmente de férias, parto com marido e filhos para Minas Gerais, onde mora nossa família. Ufa! Hora de relaxar... Mas não sem antes visitar todos os tios, avós, primos de primeiro, segundo e terceiro grau e agregados. Os meus e os dele. Antes mesmo de abrir os olhos pela manhã já há uma trupe de avós ansiosos pela presença dos netos, aguardando a nossa anunciação dos planos do dia. É preciso fazer escalas justas entre a casa de um e de outro, intercalando com os almoços e cafés com os amigos que a gente queria tanto encontrar. Uma semana e já começo a achar a antiga rotina do ano quase um resort. Estou exausta.

Uma vez cumprido todos os deveres da espécie sócius-familiris, arrumo novamente minhas malas e vou, com as crias, para o apartamento no interior de São Paulo. Cidade tranquila de águas termais, com uma praça linda onde se compra pipoca e o melhor bolo de milho que já existiu. Meia duzia de lojinhas, dois bons restaurantes e só. No prédio, onde além do meu pequeno clã estavam minha mãe e minha avó, uma piscina impecavelmente limpa e de água aquecida. Em outras palavras: o paraíso.

Guardei o relógio no fundo da mala e me dei conta de ter esquecido - involuntariamente, juro! - meu carregador de celular em Minas. Quase incomunicável vou me esquecendo que o mundo é grande e habitado por muita gente. Meu universo vai se reduzindo aos poucos metros que separam nosso apartamento da piscina. Acordo todos os dias para nadar e volto para dormir. Não por obrigação, como acontece quando se paga caro pela diária de um hotel e nos sentimos obrigados a usufruir da área de lazer mesmo preferindo ficar na cama lendo um livro - mas como se essa fosse minha natureza animal, um ritual diário que cumpro inconscientemente.  

Entre minha avó, minha mãe e eu, encontro a simbiose perfeita. Convivemos com poucas palavras porque a maior parte da comunicação é adivinhada. Não há a necessidade de explicar nada, porque tudo já é sabido entre a gente. Não é necessário pisar em ovos nem medir palavras, ainda que o assunto seja sério. Nossa relação é tão sólida que permite divergências à vontade. Nossa afinidade é corporal, coisa de quem já habitou o útero uma da outra. Como planetas em órbita, nos movimentamos em perfeita harmonia. Uma cozinha, a outra lava as louças, a outra arruma as camas... sem que nada precise ser combinado. Somos a própria combinação.

Vinte e um dia depois é hora de voltar. Hora de encontrar as roupas já acomodadas nas gavetas e estiradas no varal. Hora de esquecer do biquini e de dizer até logo. O privilégio de se viver tanto amor cobra caro na hora da despedida. Se não for até as próximas férias, digo que nos vemos "do lado de lá". Humor negro que a gente sempre usa para abrandar o medo que temos de nos separar definitivamente. Volto pra casa bronzeada, vivendo os dias mais pelo sol e pela lua que pelos números que o relógio mostra. Coração tranquilo pronto para o tal recomeço, depois dessas férias de verdade.