quinta-feira, 29 de abril de 2010

Atos falhos

Desculpe-me, minha filha, mas é que às vezes esqueço...

Que as canetinhas só colorem o mundo se destampadas,
Que não há razão para os brinquedos se guardados,
Que se não pode sujar roupas é melhor nem usá-las,
Que brincar é mais interessante que dormir,
Que correr é mais divertido que andar;
Que legal é trocar a roupa das bonecas;
Que as paredes ficam mais bonitas se desenhadas;
Que espantos e tristezas devem ser enunciados;
Que pouco importa a combinação das roupas se confortável.

É difícil manter o espírito sempre jovem.
Às vezes me esqueço das suas pequenas verdades e cometo grandes injustiças.
Desculpe-me, minha filha, mas é que às vezes esqueço.


 Ilustração: Nicoletta Ceccoli

sexta-feira, 16 de abril de 2010

ALZHEIMER


Não são apenas as suas memórias que estão desaparecendo. Junto com elas, vão também as minhas. Porque só sou neta na sua presença de avô. Sem avô, como é que fica a neta?
Quando te vejo andando inquieto pela casa imagino que está procurando esta história sua, que se perdeu não sei aonde.  Sem reconhecer as pessoas em nossa volta deve ser mesmo difícil saber quem a gente é. Porque, de certa forma, a gente só é alguma coisa na presença do outro.  Só sou mãe na presença da minha filha. Só sou professora na presença dos meus alunos. Só sou esposa na presença do meu marido. Só sou filha na presença da minha mãe. E também só sou neta na presença do meu avô. Se meu avô se perdeu, fiquei órfã também da neta que eu fui por tantos anos e com tanta alegria.
Dá vontade de sair à busca da memória com você, vô. Achar o passado escondido debaixo da cama e te entregar. Toma vô, achei a gente pra você. Mas nem eu, no alto da minha juventude, sou capaz de tal proeza.
Então fico imaginando que cada partícula de memória que lhe escapa agora, vai se esconder numa outra dimensão, um lugar onde você vai, aos poucos, ganhando forma novamente. A essa altura, sua parte vô já está lá, esperando as outras partes de você para ficar completo outra vez.  Ainda assim, a gente fica aqui, segurando já com saudades os restinhos que por enquanto nos sobram.


Este é o post de número 60 neste blog que comemora, hoje, o primeiro ano no ar. Gostaria de agradecer do fundíssimo do meu coração a todas as pessoas que visitam sempre o blog, os leitores, os seguidores, os divulgadores e comentaristas. Procurei responder a todos os comentários durante o ano, já que meus posts são sempre impessoais. Vocês têm sido fundamentais neste exercício a que me propus de escrever, escrever e escrever. Muito obrigada a todos pelo carinho e pela amizade. ~ Nina Fiuza.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O que acontecia no mundo quando você nasceu

“O que acontecia no mundo quando eu nasci?” Tinha aproveitado a brecha entre as visitas para começar a completar o seu álbum do bebê, uma vez que todas as mães foram categóricas em dizer que, sim, a gente esquece rápido. Mas, o que é mesmo que acontecia no mundo? Mundo... mundo... onde fica isso mesmo?

Desci da minha cama e fui até a janela do quarto. A vista do décimo sétimo andar me deixou com as pernas bambas. Não pela altura, mas pela imensidão que minha vista pôde alcançar. Depois de uma semana da sua vida confinadas naquele hospital tão branquinho, higienizado e silencioso, havia me esquecido do mundo lá fora. Barulhento. Sujo. Vi milhares de carros e pessoas indo de um lado para o outro, todos alheios a sua existência. Por um instante achei que devesse gritar, anunciar a sua chegada assim como Rafiki fez  do alto da pedra do orgulho com o pequeno Rei Leão. Não o fiz, mas continuei certa de que se o mundo soubesse sobre você, todos se curvariam diante deste milagre maravilhoso, o maior de toda a minha vida. 

Até que, já na escolinha, houve aquela festa do folclore. Você estava linda, de fantasia de fadinha verde e com uma estrelinha desenhada na bochecha. Eu, na platéia, não sabia se aplaudia ou tirava fotos. Resolvi tirar fotos. E foi no momento em que me aproximei do palco que descobri. Era óbvio e proporcionalmente cruel.

Vi dezenas de outros pais e mães, com suas máquinas fotográficas e seus olhos marejados de emoção. Apesar da dança em conjunto, pude acompanhar os olhos daquelas pessoas e percebi que exatamente todas elas assistiam a uma apresentação solo. Para cada um de nós, só existia uma estrela na festa: o próprio filho. 

Saber disso me causou uma enorme tristeza.Como será que o mundo te trataria (ah, sim, o mundo) desprovidos do amor que eu sinto por você?

Sem ter essa resposta, passei a te amar em dobro, que é o que eu podia fazer. A página do álbum continua em branco. Não, nada mais importante acontecia no mundo no dia do seu nascimento.