sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Por um triz

Hugo,

Em breve completaremos dez anos desde que você se foi. Pego-me com o mesmo espanto de quando completei dez anos de vida, contemplando a exorbitância dos dez dedos nas duas mãos. Parece que foi outro dia que eu deixei os cinquenta reais debaixo do santo da vó para te ajudar com a gasolina. Você disse que não precisava e eu insisti porque sabia da sua luta naqueles dias. Nosso último encontro.

De lá para cá muita coisa mudou na minha vida. Recuperei e fortaleci a minha fé, por exemplo. Olhar para a cova é limitado demais, uma hora acabei preferindo me virar para o céu, que comportou melhor a extensão dos meus sentimentos.

Mergulhei fundo nessa coisa do luto, sem saber que voltaria de lá com tantos ganhos. A dor da finitude nos apresenta uma honestidade viciante; tenho lapidado um comprometimento com a minha verdade que às vezes me constrange diante de situações que demandam dissimulação. Mas não me importo sempre com isso porque acho que mais vale a relação que a gente tem com a gente mesmo. A dor nos ensina nossos limites, nossas necessidades, nossas curas... além de colocar todo o resto sob uma nova perspectiva. Tenho me conhecido mais e aprendido a buscar o melhor para mim, como você sempre disse que devia ser.

Também foi nos mergulhos do luto que encontrei pessoas inspiradoras, que me possibilitaram a publicação de um livro. Você ia gostar de ter me visto no rádio, na internet, na tv, no jornal. Tem sido tão incrível viver essa experiência... ela também faz parte da minha verdade. Tenho recebido mensagens de leitores que me mostram a verdade deles também. O luto tem uma beleza que eu ainda nem sei medir, “pena que dói”.

Samuel chegou quando você estava indo, talvez vocês tenham se esbarrado no caminho. É muito esquisito pensar que você não esteve aqui esse tempo todo, vendo ele crescer. Outro dia tive o ímpeto de procurar uma foto de vocês dois juntos, esquecida dessa impossibilidade. Às vezes penso que a saudade tem uma força tão grande que vira presença. Quase parece que você esteve nos aniversários, nos natais, na mesa redonda da cozinha... a fotografia não acontece por um triz.

Seria tão bom se você estivesse realmente por aqui, para eu também poder contemplar a sua vida nesses dez anos. A morte prematura é mesmo uma m*rda, mas já que não tem remédio para trazer você de volta, fico aqui com esse exercício de tentar ver o copo meio cheio, de jogar açúcar nessa limonada azeda, que é a saudade que eu tenho de você.

 

*ilustração: Joanna Concejo (joannaconcejo.blogspot.com)