domingo, 28 de novembro de 2010

Beatle-epifania


Não assistir a um show dos Beatles foi uma frustração que acompanhou toda a minha existência, dado ao fato de ter nascido três anos após a morte de John Lennon.  Era sempre com nostalgia que eu assistia aos shows do quarteto no vídeo ou pela internet, sem imaginar que um dia eu ainda ocuparia o lugar de uma daquelas beatlemaníacas ensandecidas.  Pelo menos em parte, foi o que aconteceu.

E nem no sétimo dia após este acontecimento a emoção descansou. Ainda agora meu coração se acelera como se Paul fosse ressurgir em um palco imaginário e me emocionar,  mais uma vez, com uma de suas canções históricas. Quanta prepotência em usar o pronome em primeira pessoa. Paul não me emocionou. Paul emocionou a dezenas de milhares de pessoas. Paul emocionou ao mundo inteiro.

Parte da emoção se deve ao estádio lotado. Impossível seria não se afetar pela energia de mais de 60 mil pessoas reunidas em estado de alegria. Gente de todas as idades e de todos os lugares sorriam umas para as outras, com a cumplicidade de irmãos que dividem genes em comum.  Bater palmas em conjunto, formar um gigantesco coral, jogar bexigas brancas para o alto, formar “olas”...  isso tudo foi um espetáculo à parte. Coisa bonita de se ver.

Outra parte da emoção se deve à gigantesca indústria criadora do Paul-ícone.  Estar a poucos metros de distância Paul foi uma experiência surreal. Apesar de ter quadros e uma infinidade de discos com o seu rosto pela minha casa, teria sido menos assustador se visse naquele palco um ser de 3 metros de altura, com cauda de dragão, chifres ou coisa assim. Mas não. A grandiosa figura de Sir. Paul McCartney se personifica assim, num homem comum de charmosas sobrancelhas arcadas. 

É de outra emoção, porém, que venho tentar registrar. Algo assombroso vivi naquela noite de domingo. Conversando com outras pessoas que estiveram lá na mesma ocasião, percebo que o que senti também sentiram muitos deles, mesmo que em momentos diversos.  O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.

Pelos meados do show, que durou três maravilhosas horas, um único foco de luz recai sobre Paul McCartney e seu violão.  Era “Blackbird”, sem direito à banda ou à pirotecnia.  Como que para recuperar o fôlego, deitei minha cabeça sobre o ombro do meu marido e fechei meus olhos. Neste gigantesco instante vi milhões de imagens simultâneas. 

Vi meu marido e eu adolescentes, vestidos em nossos uniformes  brincando de “forca” com os títulos das músicas dos Beatles no colégio. Vi nossa filha com baquetas na mão acompanhando “Band on the Run” no sofá-bateria. Vi nossos almoços de domingo, quando paramos de mastigar para cantar o “baby” de Michael Jackson em “Say, say, say”. Vi as ruas de Barcelona e Guilherme e eu cantando  interminavelmente “The Girl is mine”. Vi-me criança, sacudindo a cabeça ao som de “Twist-and-shout” sobre o colchão com minhas amigas enquanto o sol amanhecia do lado de fora do quarto. Vi-me deitada sobre a ardósia da nossa antiga casa, sentindo o cheiro do vinil que tocava ao meu lado. Vi meus pais, vinte anos antes, no mesmo show em terras estrangeiras. Vi discos sendo queimados em praça pública. Vi um submarino amarelo. Vi beatlemaníacas ensandecidas em preto e branco. Vi rostos chorando. Vi rostos sorrindo. Gente de todos os lugares e todas as épocas.

Todas essas imagens ocupavam um mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. Sufocada por tal visão abri os olhos e vi Paul McCartney e seu violão. Uma epifania.  

Entendi com indescritível emoção que Paul McCartney é o ponto de interseção de uma infinita rede que não cessa de crescer através dos anos e gerações, da qual eu também faço parte.

São desses poderes que a música tem... 

  
Trechos em ítalico: "O aleph" de Jorge Luis Borges.
Imagem retirada daqui

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Adorável Intruso - Parte II

O que irei contar aqui aconteceu há duas semanas, mais exatamente na tarde do dia 31 de outubro de 2010. Deitada na cama eu observava minha filha brincar com meu porta jóias. Ela vestia-se alegremente de vaidade, pulseiras, anéis e todos os colares que encontrava. Alcancei a máquina fotográfica, sempre preparada, e bati uma foto histórica. O disparo do flash coincidiu com o exato instante em que a vir-a-ser mulher apareceu, ainda que tímida, por entre os traços de criança. “A moça apareceu no rosto da menina”. Da minha menininha. 

Talvez eu tenha feito vista grossa ao anúncio da sua chegada, mas a verdade é que apesar das concordâncias perfeitas e das roupas e sapatos perdidos, enxergar uma moça ali naquele rosto que me era todo familiar foi um susto, uma revelação. Aquele esboço de mulher chegou sem pedir licença e foi alongando o nariz, inchando as maçãs e afinando em linhas retas as curvas do rosto infantil. Tudo assim, sem mais nem menos e de uma hora para outra.

E eu, que até então tinha a memória fresca do cheiro dos paninhos molhados de leite, dos seios doloridos e das roupinhas de algodão, fui arremessada para um espaço assustadoramente desconhecido. Quantas incertezas cabem no futuro de uma única pessoa?

Desde então venho imaginando que mulher será essa que se esconde e aos poucos se revela. O que fará ela e se netos um dia irá gerar. Quais pessoas ela trará para perto da minha vida. Que tipo de abraço ela me dará quando nos encontrarmos em corpos maduros. De quais assuntos conversaremos em tardes de domingo, sobre a minha cama, remexendo meu um-dia-antigo porta jóias.

 Imagem: Edward Myers


E para completar, ela não fala mais "nesde" desde hoje.
Para  Adorável Intruso (parte I) clique aqui.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Matemática da Vida


Nunca fui muito boa em matemática. Com um pouquinho mais de sinceridade eu recomeço: sempre fui péssima em matemática.
Não sei bem quando os números brigaram comigo. Acho que sempre estivemos um pouco de mal um com o outro. Desconfio até que seja antipatia de nascença mesmo, alguma coisa a ver com cromossomo e essas coisas assim. O fato é que eu sobrevivi aos anos escolares tendo dores de barriga e calafrios nos dia de aula de matemática. Como eu me formei? Esse também é um mistério para mim, sendo que no meu arquivo de pendências eu ainda tenho que retomar a tabuada e, a partir daí, tudo mais o que tentaram me ensinar na escola.
Quem diria que depois de tanto tempo a matemática fosse se tornar uma coisa tão obviamente exata para mim. Sem muito esforço, hoje eu calculo que:
liquidação + cartão de crédito + parcelamento = (gasto)² - juros
mulher + filho = vida elevada à potência máxima
(bebê + fome) x (peito + leite) = (satisfação) ²
(cansaço).tpm  + sonho de valsa = (peso) ²
(peso)²  - tempo  = sonho de valsa – autoestima
½ autoestima  + fim de semestre = sonho de valsa + briga com o marido
marido + compreensão = parceria – sonho de valsa
parceria + beijo = amor
amor + tempo = post

Vivendo e aprendendo.
 E você, qual equação tem na ponta da língua?



segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Blogagem Coletiva: aderindo à campanha.

 
A Camila escreveu, alguém leu e achou bonito
Copiou sem a noção de que aquilo era delito
A autora, mesmo ocupada, percebeu e deu um grito!


Mamães da blogosfera acharam o ato um horror
Em postagem coletiva, causaram verdadeiro furor
Contra aquele que copia, seja ele quem for.


Micheli deu uma de Clarinha e disparou a tagarelar
É crime! disse ela, disposta a denunciar
A pessoa incapaz de seu próprio texto inventar.


Dani contou do plágio entalado na garganta
Mariana e Roberta  falaram tudo que as espanta
Natália, cheia de leite e prosa, canta!


No fim todo mundo concordou
que fez mais bonito quem em vez de copiar, linkou
aquilo que viu no blog alheio e gostou.




Aderindo à iniciativa da Carol Passuello.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A babá ideal

Minha mãe precisava de uma faxineira. Conversa daqui, conversa de lá e encontramos uma com ótimas referências. Vamos buscá-la numa fazenda bonita e damos de cara com uma menina, assim, quase do meu tamanho. Menina que, por falta de eletricidade, tinha noite comprida e com mais horas para sonhar.
Marta não ligava muito para os ponteiros do relógio e acabava sempre queimando alguma coisa no forno. Só ela, porém, sabia fazer aquele bolo de limão com cobertura de farofa doce que meu paladar sente tanta falta. Marta manchava as roupas ao lavá-las, mas contava as histórias mais lindas de princesas que viviam dentro das bolhas de sabão. Marta se esquecia de fazer muitas coisas, mas sabia infinitas histórias de cor.

Marta me mostrou um mundo que talvez eu não descobrisse sozinha, um “mundo da lua” em que fomos acusadas de habitar tantas vezes. Infância compartilhada que sobrevive até hoje, quando mostro os deslimites do céu para minha filha.

Para a melhor babá do mundo, minha eterna gratidão.
 
Imagem: Shermy

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Casa longe de Casa


Comecei a sofrer com o dia do casamento por volta dos meus sete anos. Seria eu capaz de viver longe das sardas da minha mãe? Eu bem sabia que não e, se o casamento fosse algo irremediável, já estava decidido: seria vizinha da minha própria família. Talvez a preocupação precoce já antecipasse o fato de que eu, com uma aliança no dedo, estaria bem longe de tudo o que me é familiar. 

Que surpresa eu tive quando percebi o valor da distância. Enxergar o mundo assim, só com o meu par de olhos, foi uma experiência reveladora. Será que eu teria me entendido esposa se estivesse acompanhada dos olhares pesados de quem conhece todo o meu passado? O fato é que tivemos todo o tempo e a liberdade para nos reinventarmos como uma nova e única família. Como foi bonito construir nosso ninho assim, dos nossos próprios vôos solitários. 

Quando a família vem de longe nos visitar me encho de alegria e orgulho. Exibo meu território recém-conquistado como uma menininha ao mostrar a nota dez da prova para os pais depois da escola.  E aí vou me impregnando de mim mesma, vou me aconchegando debaixo das confortáveis asas maternas.

Bem na hora em que relaxo as rédeas da vida que conduzo sozinha chega a hora da despedida. E então dói como da primeira vez. Serei eu capaz de viver longe das sardas da minha mãe? Com aquele excesso de razão que os adultos carregam, eu bem sei que sim. 


Gostaria de aproveitar o post para agradecer o presente que ganhei da Mariana no sorteio que ela fez lá no Mãe da Rua. Recebi um kit de adesivos da Names2Glue que de tão lindos ainda não tive coragem de usar. Obrigada, Mariana! ;)

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A festa de aniversário


A mamãe levou um susto
Ai que dor no coração!
A idade do “bebê” não mais se conta
Só nos dedos de uma mão.

Seis anos é boa hora
Para verdadeira comemoração
Corre a mãe para Vinte e Cinco
Em busca de promoção.

Tias, vovós e bisa
Engajam-se na produção
Tanto detalhe exige
numerosa participação.

Linha e agulha para todo o lado
Tudo feito à mão
Para ser criativo é preciso
Muita dedicação.

Cinco meses se passaram
De intensa preparação
E as contas aumentaram
Para horror do maridão.

Quase tudo pronto para festa
Uma perfeição!
Mamãe e filha ficam doentes
Só pode ser de excitação.

Para estragar a alegria
“chuva” disse a previsão
Mamãe fica louca acompanhando 
o clima pela televisão.

A família veio de longe
Vizinha emprestou colchão
Pai e padrasto na mesma casa
Quanta confusão!

Finalmente chegou o dia
Vamos todos pro salão
Fazer escova e unha
Para esconder a exaustão.

Nem o frio nem a garoa
Causaram chateação
As crianças brincaram
Como se fosse até verão.

O bolo estava lindo
Os doces, uma tentação!
Todo mundo elogiou
A trabalhosa decoração.

A linda aniversariante
Se encheu de emoção
Tudo aquilo era só dela
Parecia até uma ilusão.

Tanta gente alegre
Espalhada no salão
Como é bom celebrar a vida
Com quem mora no coração.





Não gosto de publicar fotos pessoais, mas acabei não resistindo. Precisava compartilhar pelo menos um pedacinho da festa com vocês. No blog da Tatiana Bonotto, a artista que fez o bolo e os cupcakes irresistíveis, tem mais algumas fotinhos.  ;-)

Fotos by Larissa

sábado, 11 de setembro de 2010

Refúgio Cosmético-Materno


Depois de ter passado da fase de deixar o bebê dentro do chiqueirinho hipnotizado pelo Baby Einstein ou de levar a criança na cadeirinha para o banheiro e ficar jogando água contra o box para entretê-lo, a hora do banho finalmente passou a ser um momento meu, egoísticamente falando.  

Não dá pra ir ao salão, não dá para ir a academia freqüentemente, não dá para passar o dia de pernas para o ar lendo um livro. Mas tomar banho é necessidade básica de higiene. Tomar banho tem que dar. E o melhor: todos os dias!

Ficar trancada no banheiro é o que mães podem fazer sem culpa. O que mamãe está fazendo? Não, ela não está negligenciando sua cria. Está tomando banho, ué. Depois de descoberto esse refúgio espiritual cresceu em mim uma avassaladora paixão por cremes, xampus, esfoliantes e, porque não, pastas de dentes.

No chuveiro fica difícil escolher uma das várias opções de xampu.  Apesar de só ter uma cabeça, há um produto para cada tipo de cabelo: lisos luminosos, cachos rebeldes, ondas glamour, cor estonteante. O que importa mesmo na hora de escolher o xampu é a fragrância. Tem dia que estou mais para coco com lima, outro dia para baunilha ou chocolate. Depende do estado de espírito. Quando não consigo decidir, vão  os dois mesmo. 

Os sabonetes também causam polêmica. Eucalipto ou Orquídea-gotas-de-beleza? Aroma-relax-pele-dos-sonhos ou efeito-iluminador? Isso tudo, é claro, para ser conjugado com o sabonete esfoliante, que se encaixa em outra categoria que não a dos sabonetes, apesar do nome.  Aí não há dúvida porque sou fiel a ele, o único e absoluto esfoliante de Açaí. Tão cheiroso, mas tão cheiroso... que eu tive que experimentar com uma lambidinha. (Não recomendo).

Depois do banho vem a melhor parte: a sobremesa. Um mosaico de frascos coloridos enfeita a pia. Dois ou três óleos e uma infinidade de hidratantes. Tem o próprio para os pés, joelhos, pernas, culotes, mamas, ombro-e-pescoço, rosto e área dos olhos. E não importa quantos hidratantes você tenha, sempre há um lançamento que você quer muito ter. Essa insatisfação  permanente me leva a, às vezes, dar uma de Xuxa em comercial da Monange e usar muito, mas muito creme de uma só vez. Isso quando não acabo passando o creme de marcas de expressão no joelho e calcanhar para me livrar dele mais rápido. A alegria de jogar um frasco vazio no lixo é quase tão grande como a de trazer um cheio e novinho em folha para a família.

Futilidade ou não, meus queridos cosméticos cuidam de mim como eu cuido da minha casa, dos meus alunos e da minha família. Inverter a ordem dos fatores é uma deliciosa terapia.


sábado, 28 de agosto de 2010

Inferno Astral


“Mamãe, eu vou nadar nesde aqui até você”.  Quando percebi o erro abri um sorriso e logo cutuquei seu pai para ele não corrigi-la.
Há tempos estamos lhe ensinando...  a não falar como o “Cebolinha”, a pronunciar o ch corretamente, a usar os plurais e fazer as conjugações corretas. Porque quando você errava as pessoas diziam que era hora de lhe levar ao fonoaudiólogo. E porque devíamos ser bons pais, ensinamos a você como tudo deve ser.
Também ensinamos você a escovar os dentes e a dormir sozinha. Ensinamos que é certo guardar os brinquedos e as roupas na gaveta. Explicamos como ligar o computador e a televisão. Ensinamos as noções básicas de higiene e as boas maneiras.
Você, boa aluna, aprendeu rápido. Tão mais rápido do que eu pudesse imaginar. Lembrar dos seus primeiros anos de vida já é falar de antigamente, porque você aprendeu tantas coisas e mudou. Sinto nitidamente que já mudamos de capítulo neste que será o livro da sua vida.
Diante de suas perfeições fiquei assim, num misto de orgulho e saudades. Então você, piedosa, dá-me de presente um nesde. Que ninguém se atreva a corrigi-la, minha eterna pequena. 

Não julgue mal essa mãe tristonha, porque o amor que sinto por você é o mesmo. Nesde sempre. Até sempre.

domingo, 15 de agosto de 2010

Em defesa de um marido vegetariano

Era mesmo difícil ser vegetariano em meio à alcatéia. O pai caçava, o avô caçava, o bisavô caçava e, para piorar as coisas, o irmão caçula caçava. Depois de ser apanhado pela terceira vez com o focinho manchado de frutas do bosque ele foi praticamente obrigado a se afastar do bando.

Por que eu? – uivava ele floresta afora, inconformado com seu destino infeliz. Passando por uma dolorosa fase de autonegação, ficou dias sem comer uma folhinha sequer (porque tentar um bifinho cru já estava fora de cogitação há anos). Seu estômago vazio colado à espinha dorsal sentiu de longe um cheiro bom de bolo de cenoura com calda de chocolate, de brownie com nozes, de torradas com geléia de amoras, de pudim de leite, de biscoitinhos de nata, de torta de maçã. 

Arrepiou até o último pelo do rabo e a boca seca voltou a salivar em abundância. Lembrando do seu aspecto, tentou fazer uma cara simpática, lambeu as patas e aproximou-se do banquete. Perguntou aonde ia aquela menina com tantas guloseimas e, apesar da vulnerabilidade dela, não foi capaz de saciar-se ali mesmo. 

Correu para o destino da menina. E porque também não podia fazer mal àquela frágil velhinha, colocou-a cuidadosamente no armário. Até forjou um assento com cobertores dobrados pra senhora ficar mais confortável. Aproveitou para pegar uns trajes e se disfarçar de vovozinha. 

Tudo bem que mentir não era bem a dele, mas a fome + rejeição já haviam consumido sua última dose de ética. Deitou na cama e aguardou. A menina chegou serelepe e sentou-se à cama. 

_ Mas por que estas orelhas tão grandes?

Quem é que já chega falando mal da orelha da própria avó? Nem bênção essas crianças pedem mais, pensou ele com indignação sem prever a tragédia que se aproximava. 

_ Mas por que estes olhos tão grandes?

Ora, ora... que menina curiosa!

_ Mas por que este nariz tão grande?

Neste momento seus olhos – grandes olhos – já estavam lacrimejando. Ele já estava cansado de saber que era alma de outro bicho nascido em espécie errada. Ele mesmo nunca gostou daquelas orelhas pontudas e achava o nariz realmente um exagero. Ela não precisava nada ficar jogando isso tudo na fuça dele. A vida já não andava nada fácil, poxa. 

Foi então que ela lhe perguntou sobre os dentes. Os dentes! O principal símbolo de sua vergonha, os quais ele tentou dolorosamente gastar mastigando pedras à beira do rio. Até a um lobo infeliz resta um pouco de dignidade. Aquilo já era tortura demais. 

Numa explosão de raiva saltou da cama, rasgando as roupas que trajava e revelando sua enorme massa peluda e musculosa. Pulou sobre a menina que usava um estúpido gorro vermelho e puxou-lhe a cesta de doces. A menina, além de cruel e curiosa, era uma digna soprano, cujos berros buscaram um caçador que passava ali.

Caçador este que, com toda a ignorância da humanidade concentrada num dedo-no-gatilho, já entrou na casa e, julgando pelas aparências, deu cabo do animal. Gran finale injustamente aplaudido por gerações e gerações até os dias de hoje.

E este foi o trágico fim do lobo mau, que morreu sem comer uma migalha sequer daquele bolo de cenoura.


segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Férias sem filhos


Vivi a primeira semana de maternidade anestesiada pela emoção de ser mãe. Não me lembro das dores do parto, que a essa altura já nem sei mais se de fato existiram. Os dias eram marcados não mais pelo ir e vir do sol, mas pelas mamadas e choros que logo se dispuseram em rotina. Foi quando no segundo sábado depois do nascimento da minha filha acordei com o já esperado choro da madrugada. Mas ué? Não é sábado? Então me dei conta de que tinha assumido uma tarefa sem fim, a qual eu cumpriria pela vida toda, sem recessos.
O tempo, amigo camarada, apresentou-me o costume que me deixou assim, acostumada. Parei de fazer as contas das quantas repetidas vezes trocava fraldas, entendi que tudo bem se não recebesse um muito obrigado depois de levantar no meio de uma noite de inverno para fazer uma mamadeira. Aliás, descobri o significado das palavras incondicional e altruísmo. E de tanto que o tempo, o costume e eu andávamos juntos, ficou até estranho pensar na vida antes da maternidade. O que será que eu fazia com tanta liberdade?
Quase seis anos depois resolvemos me dar férias. Dez dias para eu fazer seja lá o que for que eu fazia antes de ter um filho. Vai ser bom, concordamos sem que eu entendesse o porquê daquele nó na minha garganta. Vejo minha pequena no taxi indo embora com a vó, as duas felizes da vida. Meu sorriso agüenta só até a esquina. A dor é tão grande que vira lágrima, penetra os músculos, rompe os nervos.
Todos os livros que eu leria, os trabalhos que adiantaria, os cinemas que assistiria, as caminhadas que faria, todos os planos se transformam em um par de olhos mirando o teto e um grande vazio na existência. Concluo que devo ter sido muito infeliz até ser mãe.
E o danado do tempo aparece de repente e agora me traz a novidade. Alegre novidade que se acomoda nos buracos vazios que cavou a falta. Tomamos, eu e Ele, uma dose cavalar de romance e conseguimos, depois de um impensável esforço, aproveitar plenamente nossas férias. E como foi bom... Trouxemos na mala um punhado de ânimo e uma coleção de saudades transformadas em presentes.
E assim vou percebendo, mais uma vez, que tudo tem seu tempo e seu preço.  


sábado, 10 de julho de 2010

Nova Convocação

Vamos lá pessoal, sem desânimo. Não guardemos as camisas no fundo da gaveta. Não tiremos as bandeiras da janela. Aproveitemos o embalo para continuar torcendo pelo nosso país. Vamos cantar o hino nacional. Mantenhamos a posição de sentido diante da nossa nação, apesar do futebol, da política e da malandragem.

Façamos uso da liberdade de expressão, mas sem deboches. Assunto sério deve ser tratado com seriedade.  Se as nossas crianças só conhecem os nomes dos nossos governantes por meio de piadas, teremos uma nova geração de políticos palhaços no futuro. Apesar das injustiças, sejamos nós os primeiros a ensinar o que significa a palavra respeito.

É pelo exemplo do patriotismo que formaremos cidadãos engajados. Pessoas que não jogam lixo no chão da própria calçada, que não roubam nem furam fila. Pessoas que investem energia e tempo em prol de um bem comum: o Brasil.

Porque só quem ama o país incondicionalmente pode construir um país com condições reais de ser amado.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Passeios de MSRC

A mãe-solteira recém-casada andou visitando outras casas.

Esta semana fiz uma participação em um dos meus blogs favoritos de todos os tempos. Trata-se de NY with KIDS, escrito e administrado pela Paula. Lá você encontra todas as dicas de lugares, lojas e tendências do universo infantil na Big Apple. Fiquei feliz da vida com o convite. Quem quiser saber o que escrevi por lá clique AQUI.


Hoje saiu texto inédito na MUNDO MUNDANO. É bem provável que ele apareça por aqui num futuro não muito próximo, mas quem quiser adiantar a leitura é só acessar AQUI.


Descobri recentemente a republicação de um artigo escrito por mim, agora na INTUS-LEGERE, site de psicopedagogia. O assunto é aquele que sempre me faz escrever: filhos! Apesar de o texto ter um Q de científico, convido as mamães para a leitura clicando AQUI.

Aproveitando, agradeço a todas as pessoas que me deram a oportunidade de escrever e de, portanto, ser feliz. Obrigada pela divulgação, pelos acessos e comentários (tão queridos comentários).

sábado, 26 de junho de 2010

Imprevisível Imaginário Infantil


Houve a época em que ela adorava ouvir a história de quando ainda morava dentro da minha barriga e de como ela veio ao mundo. Escutava atenta e emocionada, como quem recorda de um passado longínquo.
Ela tinha dois anos.
Antes de dormir era sempre a mesma história que ela queria ouvir. Então eu contava paciente de quando ela era do tamanho de um grãozinho de arroz e morava dentro da minha barriga. E de como ela cresceu lá dentro até ficar do tamanho de um feijão e continuou sempre a crescer até que a Tia Kitty (Doutora Cristiane para os menos íntimos) abriu a minha barriga e a tirou lá de dentro.
E assim passamos algumas semanas, ela pedindo para eu contar a mesma história e eu contando com os mesmos detalhes de sempre. Até que um dia a peguei no quarto, contando praticamente uma história de terror para a boneca dormir. E assim ela dizia:
“Quando eu era bem pequena, morava na barriga da minha mãe. E lá dentro eu papava muito arroz e feijão e fiquei grandona. Aí a Hello Kitty cortou a barriga da minha mãe e me tirou lá de dentro”. 




* Um graaande abraço para a Dr. Kitty, nosso anjo da guarda!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Criando Laços Paulistanos


Dá, sim, para viver sem amigas.

É fácil guardar as frustrações só para gente. Quando apertar basta ler um livro, ver um filme triste e desabafar.

Ninguém precisa ficar ligando todos os dias para outra pessoa exclusivamente para comentar qual receita deu certo, qual promoção encontrou, qual cor de cabelo você adotou. Essas futilidades não têm absolutamente NADA a adicionar na vida de alguém.

Só quem não tem opinião própria precisa de uma amiga para ir ao shopping e palpitar sobre exatamente tudo o que você olha. E espelhos existem nos provadores para suprir a falta de amigas julgadoras do que vestiu bem e o que não ficou legal.

Amigas distraem nossa atenção. Tiram nosso foco. Não dá para correr na esteira da academia nem para fazer economia. Porque amiga sempre tem história para contar e liquidação para indicar.

Além do que, vivendo sem amigas, você precisa cuidar só dos seus problemas. Você pode continuar achando que a sua história é única, que seus dramas são os maiores e suas tristezas mais profundas.

Dá, sim, para viver sem amigas.
Mas ainda bem que eu tenho as minhas.

 

Gabi, é muito bom ter você por perto. Parabéns pelo seu dia!

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Pieguices Verdadeiras

Na manhã do nosso casamento, quando foi me dada a oportunidade de discursar, só consegui dizer “obrigada”. A emoção havia ocupado o espaço das palavras. Espero que não se importe pelo quase um ano e meio de atraso, mas gostaria de terminar o que comecei naquela ocasião.

Obrigada por ter me escolhido 
quando tinha todas as mulheres do mundo para escolher.

Obrigada por ter visto minha beleza, 
sem dar importância para as marcas da minha história.

Obrigada por abrir seu coração livre de preconceitos. 
Obrigada por ser tão naturalmente pai.

Obrigada por compartilhar sua família comigo. 
Obrigada por ser você minha família.

Obrigada por me mostrar um futuro tão bonito. 
Obrigada por querer fazer parte dele.

Obrigada por compreender minha maternidade. 
Obrigada por admirá-la.

Obrigada pelas mãos dadas. 
Obrigada pelo cuidado. 
Obrigada pelo carinho.




A partir deste mês estarei quinzenalmente na MUNDO MUNDANO com textos do “Mãe-Solteira Recém-Casada” e outros inéditos. Este é um dos primeiros frutos que o blog me rendeu, portanto nada mais justo que compartilhar a novidade com vocês que me sustentaram até aqui. Acessem a revista e divulguem se acharem que vale a pena.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Meu Amor Eterno


Acordei chorando. Mal sabia eu que horas mais tarde daquele mesmo dia todos os meus valores mudariam e  o que me causava lágrimas deixaria de ter importância. 
Uma experiência até então oculta me deixava receber as contrações com calma e naturalidade. Experiência herdada de todas as mulheres da história. Animal consciente da sempre condição feminina, nada me assustava nem estranhava. A malinha aguardava carinhosa e pacientemente no canto do quarto, os telefones da médica grudados na geladeira, as pessoas que importavam pré-avisadas. Agora era só esperar a natureza seguir o seu curso.
Voltei a deitar na minha cama, a mesma que velou meus sonhos adolescentes. Tentei dormir meu último sono solteiro,  já saudosa de um passado cuja última página eu estava acabando de escrever.
Minha mãe dirigiu para o hospital. Íamos tranqüilas e felizes naquela noite de domingo, no ato de maior cumplicidade que já dividimos até hoje. Chegando lá, despedi com abraços apertados de todas as pessoas que foram me ver embarcar nesta jornada sem volta que é a maternidade.
Sozinha no vestiário, despi-me por completo e entendi toda a existência humana nas curvas do meu corpo grávido refletido no espelho. Senti a primeira pontada de medo por fazer parte de tudo isso que é a humanidade. Foi então que O vi, como o bom Pai que é, apontar o dedo para mim e dizer que não adiantava fazer pirraça. Nós iríamos passar por aquela experiência com ou sem choro. Ele, mais do que eu, sabia que eu estava pronta. E Ele esteve de mãos dadas comigo, o tempo todo.
Na sala de parto todos os medos foram embora. Minha mãe observava o ciclo da vida se formando da cabeceira do meu leito. Os médicos conversavam animados. A atmosfera estava repleta de otimismo.
Quando ouvi o choro do meu bebê, ainda longe dos meus olhos, toda a atividade do meu corpo saiu de seu prumo. A totalidade do meu ser extasiado gritava sua maravilhosa existência, de ventre aberto para o universo.
 Achei, de fato, que estivesse morrendo. Morrendo de alegria. Minha filha.


* Feliz dia das mães (porque hoje também é dia das mães, como ontem e amanhã). Nina Fiuza

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Atos falhos

Desculpe-me, minha filha, mas é que às vezes esqueço...

Que as canetinhas só colorem o mundo se destampadas,
Que não há razão para os brinquedos se guardados,
Que se não pode sujar roupas é melhor nem usá-las,
Que brincar é mais interessante que dormir,
Que correr é mais divertido que andar;
Que legal é trocar a roupa das bonecas;
Que as paredes ficam mais bonitas se desenhadas;
Que espantos e tristezas devem ser enunciados;
Que pouco importa a combinação das roupas se confortável.

É difícil manter o espírito sempre jovem.
Às vezes me esqueço das suas pequenas verdades e cometo grandes injustiças.
Desculpe-me, minha filha, mas é que às vezes esqueço.


 Ilustração: Nicoletta Ceccoli

sexta-feira, 16 de abril de 2010

ALZHEIMER


Não são apenas as suas memórias que estão desaparecendo. Junto com elas, vão também as minhas. Porque só sou neta na sua presença de avô. Sem avô, como é que fica a neta?
Quando te vejo andando inquieto pela casa imagino que está procurando esta história sua, que se perdeu não sei aonde.  Sem reconhecer as pessoas em nossa volta deve ser mesmo difícil saber quem a gente é. Porque, de certa forma, a gente só é alguma coisa na presença do outro.  Só sou mãe na presença da minha filha. Só sou professora na presença dos meus alunos. Só sou esposa na presença do meu marido. Só sou filha na presença da minha mãe. E também só sou neta na presença do meu avô. Se meu avô se perdeu, fiquei órfã também da neta que eu fui por tantos anos e com tanta alegria.
Dá vontade de sair à busca da memória com você, vô. Achar o passado escondido debaixo da cama e te entregar. Toma vô, achei a gente pra você. Mas nem eu, no alto da minha juventude, sou capaz de tal proeza.
Então fico imaginando que cada partícula de memória que lhe escapa agora, vai se esconder numa outra dimensão, um lugar onde você vai, aos poucos, ganhando forma novamente. A essa altura, sua parte vô já está lá, esperando as outras partes de você para ficar completo outra vez.  Ainda assim, a gente fica aqui, segurando já com saudades os restinhos que por enquanto nos sobram.


Este é o post de número 60 neste blog que comemora, hoje, o primeiro ano no ar. Gostaria de agradecer do fundíssimo do meu coração a todas as pessoas que visitam sempre o blog, os leitores, os seguidores, os divulgadores e comentaristas. Procurei responder a todos os comentários durante o ano, já que meus posts são sempre impessoais. Vocês têm sido fundamentais neste exercício a que me propus de escrever, escrever e escrever. Muito obrigada a todos pelo carinho e pela amizade. ~ Nina Fiuza.