Não assistir a um show dos Beatles foi uma frustração que acompanhou toda a minha existência, dado ao fato de ter nascido três anos após a morte de John Lennon. Era sempre com nostalgia que eu assistia aos shows do quarteto no vídeo ou pela internet, sem imaginar que um dia eu ainda ocuparia o lugar de uma daquelas beatlemaníacas ensandecidas. Pelo menos em parte, foi o que aconteceu.
E nem no sétimo dia após este acontecimento a emoção descansou. Ainda agora meu coração se acelera como se Paul fosse ressurgir em um palco imaginário e me emocionar, mais uma vez, com uma de suas canções históricas. Quanta prepotência em usar o pronome em primeira pessoa. Paul não me emocionou. Paul emocionou a dezenas de milhares de pessoas. Paul emocionou ao mundo inteiro.
Parte da emoção se deve ao estádio lotado. Impossível seria não se afetar pela energia de mais de 60 mil pessoas reunidas em estado de alegria. Gente de todas as idades e de todos os lugares sorriam umas para as outras, com a cumplicidade de irmãos que dividem genes em comum. Bater palmas em conjunto, formar um gigantesco coral, jogar bexigas brancas para o alto, formar “olas”... isso tudo foi um espetáculo à parte. Coisa bonita de se ver.
Outra parte da emoção se deve à gigantesca indústria criadora do Paul-ícone. Estar a poucos metros de distância Paul foi uma experiência surreal. Apesar de ter quadros e uma infinidade de discos com o seu rosto pela minha casa, teria sido menos assustador se visse naquele palco um ser de 3 metros de altura, com cauda de dragão, chifres ou coisa assim. Mas não. A grandiosa figura de Sir. Paul McCartney se personifica assim, num homem comum de charmosas sobrancelhas arcadas.
É de outra emoção, porém, que venho tentar registrar. Algo assombroso vivi naquela noite de domingo. Conversando com outras pessoas que estiveram lá na mesma ocasião, percebo que o que senti também sentiram muitos deles, mesmo que em momentos diversos. O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.
Pelos meados do show, que durou três maravilhosas horas, um único foco de luz recai sobre Paul McCartney e seu violão. Era “Blackbird”, sem direito à banda ou à pirotecnia. Como que para recuperar o fôlego, deitei minha cabeça sobre o ombro do meu marido e fechei meus olhos. Neste gigantesco instante vi milhões de imagens simultâneas.
Vi meu marido e eu adolescentes, vestidos em nossos uniformes brincando de “forca” com os títulos das músicas dos Beatles no colégio. Vi nossa filha com baquetas na mão acompanhando “Band on the Run” no sofá-bateria. Vi nossos almoços de domingo, quando paramos de mastigar para cantar o “baby” de Michael Jackson em “Say, say, say”. Vi as ruas de Barcelona e Guilherme e eu cantando interminavelmente “The Girl is mine”. Vi-me criança, sacudindo a cabeça ao som de “Twist-and-shout” sobre o colchão com minhas amigas enquanto o sol amanhecia do lado de fora do quarto. Vi-me deitada sobre a ardósia da nossa antiga casa, sentindo o cheiro do vinil que tocava ao meu lado. Vi meus pais, vinte anos antes, no mesmo show em terras estrangeiras. Vi discos sendo queimados em praça pública. Vi um submarino amarelo. Vi beatlemaníacas ensandecidas em preto e branco. Vi rostos chorando. Vi rostos sorrindo. Gente de todos os lugares e todas as épocas.
Todas essas imagens ocupavam um mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. Sufocada por tal visão abri os olhos e vi Paul McCartney e seu violão. Uma epifania.
Entendi com indescritível emoção que Paul McCartney é o ponto de interseção de uma infinita rede que não cessa de crescer através dos anos e gerações, da qual eu também faço parte.
São desses poderes que a música tem...
Trechos em ítalico: "O aleph" de Jorge Luis Borges.
Imagem retirada daqui