quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Crianças

Em vez de comemorar os anos de um Jesus cada vez mais velho, o Natal celebra sempre o seu nascimento. Eternamente em sua manjedoura, Jesus recém-nascido tem olhinhos alegres e sem marcas de sofrimento. O sempre-menino Jesus é pura esperança, é só ternura, é todo honestidade. Cada ano ele nasce nos presépios por toda parte espalhando aquela alegria que só meninos como ele conseguem dar. Jesus só podia mesmo ser criança.




Ilustração: Donald Zolan

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Muito na cabeça, nada na barriga.

Chega de ser diferente. A próxima gravidez será o mais careta possível. Vou começar o pré-natal antes mesmo da concepção, calcular horário da ovulação, escolher o signo do bebê e todas essas coisas. Nada de sustos (ou seria pânico?), nada de pessoas desmaiando com a notícia ao telefone, nada de surpresas. E eu bem sei que a hora certa ainda não chegou. Falta sair do aluguel, falta terminar o mestrado, falta uma babá de confiança, falta o salário aumentar, falta isso e todos aquilos. E porque não sou mais desavisada, previno.

Mas aí passa um dia, passa outro, e outro. Uma semana inteirinha, duas... e quando chega na terceira eu não consigo mais evitar que minha mente criativa entre em ação. Rafael ou Daniel? Quanto está custando um carrinho de passeio? Www.babiesrus.com. Tenho que passar o escritório para o quarto de empregada. Minha sogra vai desmaiar (de alegria)! Opa, estou um pouco enjoada... Que sutiã apertado! Rafael é melhor.

Se em outras épocas eu postergava ao máximo um exame de farmácia por motivos de desespero total, dessa vez fiquei bem quietinha, só para poder curtir minha quase gravidez junto com meus pensamentos. E quando não pude mais me iludir, passei o dia debaixo das cobertas, chorando de saudades.

Papai do céu, depois de nossos tantos encontros você deve estar me achando uma maluca. Não sou bipolar. Mas se você resolver me dar uma surpresa como aquela de cinco anos atrás, eu pro-meto que dessa vez não brigo com você nem uma vezinha.



* Ilustração: Ana Oliveira
 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Vícios da maioridade


Mesmo antes de experimentá-la eu já a conhecia, assim, de ouvir falar mesmo. Minha mãe e meu pai sempre me alertaram sobre ela; meus avós, alguns amigos e até mesmo o padre na Igreja também tentaram abrir meus olhos. Mas não teve jeito, ela me pegou.

Não lembro com detalhes o primeiro contato direto que tive com a coisa... só sei que com o passar dos dias ela foi me envolvendo, tomando conta dos meus pensamentos, da minha rotina, da minha vida. Antes mesmo de o sol aparecer eu já estou em pé, com o coração acelerado na pressa de sair logo pelas ruas em busca dela. O desespero é tanto que às vezes deixo até de me alimentar, de pentear o cabelo ou de me vestir decentemente. Eu juro que por diversas vezes eu tentei, mas tentei de verdade, ficar sossegada na cama. Apertava o olho bem forte pra ver se conseguia dormir, mas ela vinha como uma voz dentro da minha cabeça, gritando pra que eu acordasse.

Já pedi ajuda aos amigos, que sempre estiveram de braços abertos pra tentar me livrar desse vício. Eles de vez em quando me buscam para um passeio, para um chope... mas em poucos minutos eu já fico inquieta, olhando pro relógio e arrumando alguma desculpa pra voltar e me entregar a ela de novo.

Em uma das minhas últimas tentativas de me livrar de uma vez por todas da maldita, fui passar uns tempos na casa dos meus avós. Confesso que a vida pacata do interiorano é contagiante; com alguns dias já estava bem mais tranqüila e desligada de qualquer coisa. Finalmente paz.

Mas a danada parece que ganhou vida própria e veio correndo atrás de mim. Quando me achou estava furiosa, avassaladora. Agora estou aqui, sentindo-a pulsar nas minhas veias, me consumindo solitária nestas quatro paredes. Mas eu tenho fé de que não vou chegar ao fundo do poço, de que essa perdição não vai me consumir.

Definitivamente a responsabilidade é uma droga!



Texto escrito dia 29 de julho de 2005, em Belo Horizonte.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Antigamente...


Caminhando para a casa dos trinta me vejo cercada de amigos com síndrome de velhice. Os papos sempre começam com aquele “no meu tempo...” e nem se dão conta que, neste tempo aí que eles dizem ser deles, a mesma Xuxa de hoje já era apresentadora de televisão. O que tem me irritado, porém, não é a confusão temporal em que eles se metem, e sim algumas críticas que fazem às crianças de hoje. E é em defesa delas, mais uma vez, que me pronuncio.

Estes velhos falam com o ar da experiência: “No meu  tempo a gente brincava na rua, ficava super feliz com um presentinho que fosse, não passava tempo na televisão nem no computador. No meu tempo a gente inventava brincadeira, não era como os brinquedos de hoje que já fazem tudo sozinhos. No meu tempo... bla, ble, bli, blo e blu”.

Pois me permitam esclarecer algumas coisas:
A infância de hoje é diferente, sim, mas isto está longe de ser culpa das crianças. Digo isso porque nunca vi uma criança sair de casa sozinha e ir à loja de brinquedos do shopping, sacar seu próprio mini cartão de crédito e comprar um milhão de brinquedos de seu gosto. Também desconheço um inventor mirim de brinquedos de alta tecnologia. Aliás, os grandes gênios da indústria de brinquedos eletrônicos são estes mesmos que, trinta anos atrás, passavam horas (sim, senhor) na frente da televisão jogando Atari. E se as crianças de hoje não sabem inventar mais brincadeiras (o que eu muito duvido), não se trata de uma mudança da genética: é só porque elas não têm mais pais para lerem os contos-de-fada todas às noites antes de dormir.

Se as crianças de hoje são diferentes, é porque já não se fazem mais adultos como antigamente.



*Ilustração: Donald Zolan

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Metamorfoses Cabelísticas


Sempre achei que meu cabelo deveria acompanhar meus momentos de vida. Tudo isso começou, até onde eu me lembro, quando tive minha primeira paixão de verdade. Era meio estranho olhar no espelho e ver a mesma pessoa de sempre, sendo que por dentro eu era tão cheia de novidades. Resultado: luzes.

E assim aconteceu quando mudei de país e deixei minhas longas madeixas semilouras por lá. Imagina se depois de tudo que vive eu iria voltar assim, com a mesma cara do dia do embarque.

A gravidez rendeu um micro-quase-chanel-com-repiques, o que combinava bem com a confusão emocional que eu experimentava naquela época.

Quando minha filha nasceu eu bem que precisava ficar careca, e quem sabe dar uma de Michael Jackson às avessas e mudar de cor de pele também. Saí do hospital outra pessoa e minha aparência só não refletia tamanha mudança porque eu estava ocupada demais sendo mãe para pensar em salão de beleza. Mulheres que viram mães deveriam mudar até de CPF.

Não por coincidência minha filha, pela primeira vez em cinco anos, se vestiu sozinha para a escola, arrumou a mochila, almoçou sem ajuda e escovou os dentes sem que eu tivesse que persegui-la pela casa exatamente no mesmo dia em que trocou os cabelos longuíssimos de sempre por um chanel de boneca. Foi para o salão decidida e sem piedade. Voltou com um espanador de cabelo na mão e a nuca à mostra, feliz da vida, parecendo outra pessoa.

Será que virou mocinha?





*ilutração: Patricia Ariel

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Apagão


Ainda bem que o horário era de verão, porque quando escureceu foi para valer. Dava para ver as luzes de velas dançando numa ou outra janela. (Os tempos são tão modernos que ninguém mais tem vela. Eu, por sorte, tinha duas que sobraram de um jantar romântico semana passada). E aí a gente se pega pré-ocupando: e se a luz nunca mais voltar? E se for o fim do mundo? Como é que a gente vai saber o que fazer, se nem a televisão liga mais? Como eu vou apresentar meu trabalho amanhã, sem o laptop? E fazer o almoço sem o microondas? E meus amigos, como que ficam sem e-mail? E depois de mais algumas perguntas a gente conclui que sem eletricidade metade da nossa vida vai embora.

Das poucas coisas que não se abalaram com o apagão foi a comunicação com minha mãe. Nossa telepatia vem de antes do celular. Quando ela me levava para brincar na casa de uma amiguinha e combinava de ir me buscar às cinco horas da tarde, eu nem me preocupava: se a brincadeira estava boa demais eu sabia que ela iria se atrasar, se a amizade não estivesse em seus melhores dias calhava dela mudar os planos e ir me pegar mais cedo. E se no começo parecia coincidência, depois reconhecemos e passamos a fazer uso desse nosso sistema interno de comunicação. Na adolescência, quando vivia sem crédito no celular, nem precisava fazer a chamada a cobrar. Bastava dizer forte com o pensamento “mãe, me liga” que logo aparecia na telinha piscando: “mami cel”. A prática da telepatia chegou a tal grau de eficiência que não dava nem mais para sabotá-la. Quando passei maus bocados no exterior e quis poupá-la de aflições inúteis o resultado foi este: mãe e filha internadas, eu lá e ela aqui. Sofrimento dividido assim, por telepatia. Telepatia sem fronteiras.

Que a luz acabe: as coisas mais importantes já estão garantidas.




Parabéns Mami-Ana-Maria-Cabelos-de-Ariel. Amo-te!        

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Estamos juntos


Toda vez que ela diz “papai” eu consigo escutar as batidas do seu coração.


Mesmo quando você não me dirige aquele olhar marejado e assustado do princípio, tentando fingir que já se acostumou com o novo título, dá para ouvir.


Por alguns deliciosos instantes a gente até esquece que a luta é diária e que o caminho na construção de um amor verdadeiro é longo e difícil.


Lembre-se que mesmo quem conta com a vantagem da genética às vezes esquece que o desafio da paternidade não é só para pais como você.


Pais biológicos nem sempre são pais de coração.


E ela diz “papai”.


Então meu coração se junta ao seu neste ritmo acelerado. Porque para mim a conquista é sentida em dose dupla: me emociono por você, que ganha uma filha, e por ela, que ganha um pai de verdade.



quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Rebeldia emprestada

Se por um lado ser mãe-mulher-esposa-filha-professora-dona-de-casa-etc-etc já me deixa exausta, por outro eu gostaria de ser muito mais. Gostaria, por exemplo, de ser um pouco rebelde. Na adolescência, nas poucas vezes em que tive coragem de matar aula no colégio, contei logo para minha mãe e sofri de remorso. Sempre fui incompetente para fazer coisas erradas e acredito que com isso não experimentei um tipo de emoção da vida.

E porque não dá pra sair colocando piercings pelo corpo nesta altura do campeonato, agradeço pelas amigas que tenho. Talvez elas nem saibam disso, mas quando compartilham suas angústias e alegrias comigo, deixam-me sentir o gostinho dessas outras emoções.

Através das minhas amigas, eu já percorri toda a Inglaterra, morando em trailer e tendo vizinhos nudistas. Também já fui de mala e cuia tentar a vida no litoral baiano, fui viver de amor. Já tive namorado tatuado do couro cabeludo até a ponta dos pés. Vivi aventuras amorosas (e proibidas) sob o luar carioca e outras ainda mais inesquecíveis sob o luar de Las Vegas. Um dia abandonei tudo e fui descobrir quem eu era sozinha, noutro lugar. Já entrei em briga, tirei satisfação com gente furando fila no McDonalds, já mandei quem não devia praquele lugar. Pintei o cabelo de todas as cores e fiz várias tatuagens.

Nunca fui noviça, mas graças às minhas amigas pude ser rebelde.


quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Era uma vez...

Todas as noites me deito ao lado dela e leio um livro. Histórias diferentes ou repetidas sempre foram a porta de entrada para o mundo dos sonhos da minha filha. Ao ler, eu esperava que todas as fantasias das histórias saltassem do livro e viessem passar a noite ao lado dela, inventando.

E eu que imaginei que seus olhos grandes e azuis observavam as ilustrações, enganei-me: ela se encantava é pelas palavras.

Aprendeu desde muito cedo a desenhar todas as letras, e de uns tempos pra cá, começou a articulá-las em palavras, e as palavras em frases. Em momentos que me emocionam ela segura o lápis e escreve com facilidade, desprezando a importância desta conquista. Muito raramente levanta a cabeça e busca em uma nuvem de pensamento a grafia daquilo que coça na sua garganta.

Acredito fortemente que quando ela escreve, um daqueles seres fantásticos dos livros senta em seu ombro e juntos, fazem mágica no papel que também é porta de entrada (ou de saída) do mundo dos sonhos.




Ilustração: Ana Oliveira.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Ciclo da boa ação

Quinta-feira era o pior dia da minha semana. Saia de casa meio dia para só retornar às onze horas da noite. Na verdade, trabalhava ‘só’ até as vinte e duas horas, mas tinha que ficar esperando um ônibus para voltar a casa. Não mal digo o tal ônibus porque, apesar da sua demora e suas goteiras e seu mau cheiro e seus bancos mofados, ele era meu único meio de condução e, melhor: condução de volta para minha casa e para minha família. Sempre o adentrava com um sorriso estampado num rosto cansado depois da longa jornada.

Certo dia, após terminada a minha oitava aula, fui à sala dos professores e arrumei minha parafernália para ir embora. Como ainda faltava meia hora para minha carruagem de ferrugem aparecer, resolvi dar uma olhada nos e-mails cuja conta vive ameaçando uma explosão com a imagem de uma dinamite no canto da tela.

Após alguns alertas sobre o perigo da coca-cola, fotos de crianças seqüestradas e ppts para ter um dia lindo, ouvi o ranger da geringonça chegando do lado de fora. Peguei minha bolsa, diários, provas e livros que já estavam a postos e dirigi-me alegre para a rua. Chegando lá encontrei nada além de um cachorro magro e pulguento perambulando pela noite. O ônibus, magoado pelos meus comentários a respeito de seu estado, rebelou-se e foi embora sem mim.

Antes mesmo que eu pudesse buscar no fundo da memória as palavras de mais baixo calão para expressar a minha fúria, avistei um outro ônibus de farol ligado do outro lado da praça que existe em frente à escola. Corri com toda a energia que eu nem sabia que tinha, deixando alguns papéis escaparem e voarem pelos ares, dando vida àquela praça mórbida. Para minha sorte, aquele ônibus ia para a minha cidade e eu não teria que fazer companhia ao cão sarnento da praça durante aquela noite.

"Obrigada Deus, por não deixar uma filha em abando..." Interrompi minha prece de gratidão com a súbita e aterrorizante lembrança de que não tinha sequer um centavo para pagar a passagem de míseros 2 reais e 40 centavos (que naquela circunstância assumiram um valor inestimável). Joguei minhas tralhas ao chão e cai em desespero frente ao motorista do ônibus, que não se sensibilizou com minhas bochechas vermelhas da corrida e meus trajes sujos de giz. Foi então que...

Foi então que ouvi um senhor dizendo que pagaria a minha passagem. Juntei rapidamente meus pertences espalhados e corri para dentro do ônibus. Só depois de acomodados (eu e minhas coisas) olhei para o homem para agradecê-lo. Ele era uma pessoa de idade indefinida.Vestia uma camisa bem passada por dentro de uma calça de cós alto que acentuava sua magreza, com cinto, fivela e uma botina suja de terra. Segurava um chapéu de palha na mão e tirou de dentro do bolso um bolo magro de notas gastas que pareciam estar guardadas lá há uma eternidade. Passei a viagem toda agradecendo ao bom senhor por ter salvado minha noite.

Meia hora depois, ao descermos na rodoviária, insisti que ele me acompanhasse até minha casa que ficava a apenas alguns quarteirões dali. Notando sua resistência, pedi, então, seu endereço para que eu pudesse levar o dinheiro até sua casa no dia seguinte. Foi então que ele me disse que, como pagamento, eu deveria fazer o mesmo quando visse uma outra pessoa em apuros: ajudá-la.

Pensei nas suas palavras ao caminhar até minha casa, e também ao deitar na minha cama, e novamente ao levantar dela.

Desde então, sempre que posso, ofereço caronas a qualquer conhecido que encontro andando pela rua, e ainda não sinto que minha dívida com aquele senhor de botinas sujas e rugas de sol esteja quitada. Se, naquela noite, ele tivesse aceitado caminhar comigo até minha casa para que eu o pagasse, sua boa ação teria terminado naquele mesmo instante. Estaríamos quites e nunca mais pensaria no ocorrido. Mas ao me encarregar de pagar a ajuda ajudando uma outra pessoa, ele deu início a um ciclo da boa ação. E ao ouvir o agradecimento das pessoas que ajudo, digo a elas que façam o mesmo por outros.

Imagino que neste momento, em algum lugar bem longe dessas minas gerais, alguém, em retribuição a uma ajuda não-paga, esteja oferecendo uma carona a uma professora em apuros que acabou de perder o ônibus.



sábado, 17 de outubro de 2009

Os cinco sentidos e a saudade

Na hora da despedida a gente sabe que dali a alguns dias vamos nos rever e que neste meio tempo ambos estaremos muito bem onde estivermos. A gente sabe que não é para sempre.

E mesmo quando for para sempre, a gente deveria saber que o que vale são as lembranças dos momentos juntos, e que essas lembranças são eternas e imortais.

É muito óbvio não sofrer com despedidas, mesmo as definitivas. Afinal, já sabemos que estamos aqui só de passagem e que mais cedo ou mais tarde todo mundo tem que partir de qualquer forma. E apesar de saber de tudo isso, ainda não aprendemos a despedir sem sofrimento.

É certo que o valor das relações não estão nestes nossos corpos. Um corpo perece enquanto uma amizade ou um amor podem durar para além de uma vida. Contudo, também é certo que para conhecer um alguém dependemos dos cinco sentidos que o nosso corpo carrega. O que são relações senão toques, cheiros, sabores, sons e imagens? Não à toa pegamos um objeto nas mãos quando queremos entendê-lo. Não por puro deleite cheiramos uma flor, mas o fazemos para compreendê-la. Como poderíamos conhecer uma flor apenas na idéia?

Portanto, apesar de frágil e limitado, dou ao corpo os créditos pela construção das amizades e amores. E acredito que é por isso que ainda não aprendemos a despedir. Não me basta saber que estão todos bem, longe de mim. Sinto falta das sardas da minha mãe, do cheiro de louro no cabelo da minha avó, do calor do abraço do meu amor. Sinto falta de todas essas coisas que partem da carne e que estão longe de ser superficialidades nas relações humanas.


quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Daydreamer

Para uma mente criativa o tédio é um desconhecido. Seja durante um engarrafamento, na sala de espera do médico ou em uma viagem de ônibus: se a circunstância lhe empurra goela abaixo um momento ocioso, basta ativar a imaginação e se divertir.


Quem nunca passou horas pensando o que fazer com o prêmio da mega sena, por exemplo? Essa talvez seja a fantasia mais deliciosa e, portanto, mais comum nas mentes por aí. A gente se entrega tanto a ela que o coração passa a bater mais rápido. “E-se-eu-ganhasse-MILHÕES-agora?” Ah... faríamos viagens, plásticas, compras e mais compras. Depois daríamos uns agrados para nossos irmãos e pais, mas só para eles! Senão não sobraria nada para as nossas extravagâncias. E quando a realidade bate na porta da nossa imaginação, empobrecemos tudo outra vez. Quanto desgosto.


Outra coisa que eu adoro pensar é se o teletransporte existisse. E depois de me animar muito com a idéia de poder estar em Paris neste exato minuto e depois, num estalo de dedos, poder ir dar um abraço na minha mãe, cheguei à conclusão de que o teletransporte causaria problemas demais. Imaginem os ladrões se teletransportando das prisões para dentro das nossas casas, os alunos para fora das nossas salas? Imagina qual seria o congestionamento de pessoas no quarto do Brad Pitt? Como controlaríamos o fluxo de pessoas nos shows com ingressos esgotados? Aliás, pensem que cantor conseguiria fazer um show se as fãs ensandecidas pudessem se teletransportar para cima do palco. Definitivamente, não daria muito certo.


Bom, se eu abandono o teletransporte então posso escolher um outro super poder para mim. Comer o que quiser sem nunca engordar e plantar árvore que dá dinheiro em vez de fruta já estão batidos demais. Então vamos lá, criatividade, manda uma idéia nova para mim.


Sei que não tem muita utilidade mas, a título de curiosidade, gostaria de poder ouvir tudo o que já foi dito sobre mim. Desde que eu era apenas uma idéia na cabeça dos meus pais, até o comentário dos meus professores, alunos, colegas, desconhecidos, amigos e inimigos. Fico imaginando como eu posso ter sido assunto nas casas de pessoas que eu nem mesmo conheço. “Sabe aquela menina, amiga de fulano? Pois é. Ta grávida!” Ou então me ouvir na boca de um alguém que me notou na rua e comentou com um amigo sem que eu sequer percebesse. Seria como ver todas as minhas ocorrências num Google mágico da vida. Com isso eu não pretenderia ver quem foi falso ou não ao falar mal de mim nas minhas costas. Mas acredito que só de ver o número dessas ocorrências eu e minha amiga anã chamada auto-estima ficaríamos um tanto surpresas e dificilmente nos sentiríamos insignificantes outra vez.


Legal também seria ter um panorama de todo o trajeto que já percorremos. Como se deixássemos um rastro por onde andássemos e pudéssemos ver num mapa-múndi toda a linha da nossa vida, do nascimento até o dia de hoje. Quantos nós a rotina já não causou, penso. E, comparando com o rastro do nosso grande amor, por exemplo, poderíamos ver quantas vezes estivemos um ao lado do outro sem nos notar, até o dia em que as nossas linhas finalmente passam pelo mesmo ponto.


E se nós pudéssemos calcular quantos quilômetros já andamos, desde os primeiros passinhos até hoje? Será que daria para dar a volta ao mundo? Será que já daria para chegar na lua?


Ah, na lua, sim, eu já cheguei.


* Ilustração de Ana Oliveira

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Matryoshka

Tudo era bem fácil quando eu só precisava ser filha. Eu e minha mãe nos dávamos muito bem e éramos grandes companheiras. Mais que isso, éramos melhores amigas e inseparáveis. Mas aí veio o primeiro namorado que tirou sabe-se lá de onde um eu-namoradeiro, rebelde e sem juízo que vivia em pé de guerra com a filha que eu adorava ser. Enquanto uma queria ir para as baladas a outra queria ficar bem aconchegada no ninho materno. E se duas de mim já me deixavam louca, imagina quando as outras vieram?

Na mesa de cirurgia a obstetra tirou um bebê e uma mãe de dentro de mim. Essa tal mãe simpatizava com aquela antiga filha, mas era um pouco displicente com a namoradeira. Pra ser bem sincera, essa mãe era um bocado egoísta: não gostava que eu desse atenção para as outras partes de mim. E durante a licença maternidade eu e a nova mãe que passei a ser nos demos muito bem. Mas com o tempo eu tive que reatar a amizade com a namoradeira e a filha. E te digo que não foi nem um pouco fácil. A mãe sofreu demais, coitada. Mas a vida continuava e não dava mais para ser só uma.

Corajoso foi o marido, que ainda conseguiu pintar uma esposa no meio dessa turma toda. E com a esposa ainda apareceu a dona de casa, rainha do lar, que nas horas vagas é professora.

Tantas pessoas dentro de mim acabam me deixando um tanto confusa. Às vezes eu me troco: sou filha quando devia ser esposa, sou mãe quando devia ser professora... é uma bagunça danada. Quantas vezes não me peguei na frente de quarenta alunos, com outros olhos, vendo-me com estranheza? Quem era aquela ali?

No tira e põe de tantas máscaras é fácil ir me esquecendo. É claro que todas essas mulheres também são autênticas e são parte de mim. Mas há um eu que só eu mesma conheço, aquela última boneca matryoshka, aquele miolo íntimo que sustenta todas as outras faces de mim mesma. E é preciso muito jogo de cintura para não se perder para sempre.


quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Ah, como eu queria ser criança

Um bebê está adormecido dentro de um carrinho de passeio, à sombra daquele toldo protetor. Há dois paninhos fofos servindo de apoio para seus bracinhos e outro apoiando seu pescocinho. Uma das mãozinhas macias descansa sobre a barriguinha do bebê que se move lentamente pela respiração. Todos os músculos estão visivelmente relaxados e seus olhinhos e bocas selados de tal forma que aquela imagem estática parece irreal. Pelo menos noventa por cento das pessoas que se viram diante de um bebê mergulhado em tal serenidade soltaram um suspiro cheio de inveja e pensaram consigo mesmo: “Ah, como eu queria ser criança”.


A infância é lembrada pelos adultos como uma época mágica e livre de problemas quaisquer. Afinal, crianças não têm noção dos perigos da vida. Não sabem sequer que a vida é algo que está em jogo, constantemente. Aquele bebê adormecido no carrinho carrega em si toda a paz do mundo porque ignora a maldade existente nele.


Em defesa das crianças, venho lembrar a todos que ser criança não é assim tão fácil.


A criança vive com um pé na fantasia e outro na realidade. Enquanto nós espantamos nossos medos noturnos trancando a porta com a tetra chave, o pequeno tem que lidar com a certeza da presença dos seres mais horríveis debaixo da própria cama. O pai cheio de insensibilidade logo diz “monstro não existe”, fecha a porta e vai dormir. Não percebe, este pai, que monstro e fantasma são seres tão ameaçadores como qualquer bandido dessa nossa dimensão palpável. E justamente por serem fantásticos, podem se esconder em qualquer sombra.


Então a criança mantém os olhos arregalados, mesmo no escuro que a ela foi imposto, sempre alerta. Ela tenta lidar com a presença do perigo iminente, estremecendo dos cabelos às pontas do pé cada vez que um vento sopra e um estalo da noite acontece. Quando o medo se torna insuportável ela decide recorrer ao porto seguro do leito dos pais. Só de se imaginar entre as duas pessoas mais poderosas e amadas do seu universo, a criança já se enche de acalentosa esperança.


Ao colocar os pezinhos no chão, seu corpinho recebe doses e mais doses de adrenalina. Mesmo que o quarto dos pais seja logo ao lado, não é nada fácil se expor à solidão do corredor que comunica o seu quartinho assombrado a uma casa muito maior e mais cheia de perigos. Nas pontas do pé para não acordar nenhum fantasma, a criança chega, finalmente, ao quarto dos pais. A tensão continua e ela permanece ali, à beira da cama, sem saber como abordar seus salvadores. Será que ela deveria deitar ali mesmo no cantinho da cama, sem barulho? Será que deveria colocar a mãozinha no ombro descoberto da mãe? Será? Será? E indiferente a todo esse sofrimento, os pais acordam e ah...quanta injustiça não dizem àquele pequeno aventureiro.


Lembrar da infância com os olhos do adulto não é, de fato, lembrar da infância.




quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Ciranda para minha bonequinha



Mandei ladrilhar essa rua tão comprida
Com pedrinhas de brilhante só pra você poder passar.
E pedi que as pedrinhas iluminassem seu caminho
Sem o brilho-brilho da minha estrelinha ofuscar.

Limpei a tinta preta da cara do boi
O bicho-papão espantei para as suas noites não perturbar.
E se eles de dia aparecerem
O caçador estará à pronta a te guardar.

Nem lobo mau nem bruxa malvada
Nem nada que te possa magoar
Existirá nessa sua ciranda
Que muitas voltas há de dar.

Bonequinha quando nasceu
Pôs a mão no meu coração
Vou fazer com que sua vida
Seja sempre essa canção.


ilustração: Adolie Day

Minha boneca completa sua quinta primavera. Por ela sinto tudo o que as palavras não conseguem dizer.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A Rainha do Lar


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Quando era criança e tentava me projetar no futuro, enxergava uma mulher independente e muito bem sucedida. Marido e filhos (ou filhos e marido) não eram fatores constantes nos meus sonhos de mulher adulta. Fruto de uma geração de feministas, eu era muito bem consciente do meu potencial e dos meus direitos.

Aos dezessete anos arregacei as mangas e fui construir o meu império. Saia do colégio e ia para o trabalho com a disposição de uma formiga operária. Eu estava no caminho certo para a mulher adulta que eu pensava em ser.

Os anos foram passando e o salto alto começou a incomodar. Quando a barriga cresceu e meu corpo me obrigou a lembrar da minha condição de mulher, percebi que o percurso para a antiga projeção de mim mesma não seria tão fácil.

Abracei a maternidade de corpo e alma e automaticamente me vi sonhando em ser dona de casa, em esquecer a carteira de trabalho no fundo da gaveta para sempre e me dedicar ao meu bebê sem restrições de tempo.

E porque sou uma mulher de sorte, casei, mudei de cidade e por força das circunstâncias me vi em casa tempo integral, com uma filha linda para criar, uma casa para cuidar e um marido para amar. Plano-Amélia concretizado.

Mas os dias passavam sem que a pilha de roupas para passar acabasse, sem que a pia esvaziasse, sem que a fome da família se satisfizesse. Humana e insatisfeita por natureza, comecei a sentir saudades do trabalho, em ter meu próprio dinheiro... e o horror às tarefas domésticas foi crescendo. Afinal, não há trabalho mais ingrato no mundo, certo?

Errado.

Antes de ir para o time das feministas outra vez, parei para pensar se o trabalho doméstico é realmente “invisível”, como dizem por aí, por não ser reconhecido. Tudo bem, o marido pode até não perceber que você caprichou na faxina, o filho pode até não ter piedade quando chega da escola e bagunça tudo. Você pode ficar com a unha lascada e sem salário. Mas há, sim, senhoras e senhores, dignidade em cuidar do lar.

Afinal, o lar não é uma casa qualquer. O lar é onde moram as pessoas que você mais ama. Amor implica cuidado. O lar é onde sua família se (re)unirá, todos os dias, para ser família. A casa que não tem comida nem aconchego não congrega, manda cada um para um lado diferente.

Há, sim, um certo gostinho, em ser a única que sabe onde todas as coisas estão, o que precisa ser comprado e o que dura até semana que vem. Ter o controle total da casa, domesticá-la, não é tarefa fácil. Se você conseguiu, não se sinta explorada porque o marido não sabe onde fica o papel higiênico. Sinta-se orgulhosa.

Porque é você quem vai olhar para trás na velhice e ter a certeza, mesmo que seja a única em tê-la, de que foi a arquiteta e o peão-de-obra daquele império mais que especial: a sua família.


segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Toc, toc, toc

Há assuntos que rendem textos excelentes, ou como diria a sabedoria popular, dão pano para manga. Imaginem, por exemplo, como seria interessante uma crônica escrita no momento da própria morte? É uma pena que nesta ocasião estaremos ocupados demais morrendo, mas seria maravilhoso se pudéssemos dar um pause só pra deixar um post no blog contanto como é bater as botas. Será que a gente entende tudo quando morre? Bom, quando eu descobrir posso até tentar dar uma de Brás Cubas e mandar minhas memórias póstumas de onde quer que eu esteja. Aliás, feliz mesmo com a tecnologia eu vou ficar quando conseguirem esse tipo de conexão. Imaginem que delícia seria mandar um e-mail para o além: “Oi bisa, está tudo bem por aí?” Mas tem coisas que a gente prefere ignorar. Se eu quisesse mesmo escrever um texto sobre a morte poderia muito bem inventar um com a minha criatividade, como venho fazendo tantas vezes. Não me atreveria, porém, falar da minha própria morte. Vai que ela gosta da atenção e vem me conhecer de corpo e alma? Pois que tudo continue em segredo e fique por isso mesmo.



quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Injustiça

Apesar de sábado, acordei cedo porque queria terminar de ler meu livro em paz, antes que a casa acordasse. É certo que com o baile à noite eu deveria dormir um pouco mais. Afinal, já estou bem desacostumada com noites badaladas. Acordei assim mesmo.

Um cafezinho formaria um bom par com a leitura, mas qual foi meu desgosto quando chego na cozinha e me lembro pelo cenário encontrado da louça esquecida da noite anterior. Livro e café abandonados, bucha e detergente entram em ação.

O barulho dos pratos e copos desperta a filha, que logo pede sua mamadeira. Criança alimentada, resolvo trocar de roupa e ir ao supermercado (já que o plano de ler em paz foi por pia abaixo).

Bem humorada, escolho tudo para levar mais por menos, economizando bem o dinheiro do marido. Caixa, casa, cozinha, avental verde da vovó. Depois de uma semana estressante a família bem que merece um almoço especial feito com muito carinho.

Dessa vez, para não ter desgosto, lavo tudo antes mesmo de colocar a comida na mesa. Comemos todos com muita satisfação: eles pela comida, eu por agradá-los. O papo se estende e quando dou por mim já são três da tarde.

Tiro a mesa, lavo o que sujamos (terceira leva de louças lavadas) e finalmente pego a maleta de esmaltes para fazer a unha. Quero ser a esposa mais linda entre os colegas de trabalho do marido que lá estarão.

Filha rouba um esmalte para imitar a mãe. Esta borra as unhas tentando limpar as daquela. São dezessete horas no relógio.

Unhas finalmente feitas, começo a procurar os vestidos de festa no fundo do armário. Vê-los tão lindos me anima. Escolho um e vou passá-lo.

Antes da babá chegar dou banho na filha e esquento seu jantar. Marido entra no banho antes de mim.

Dezenove horas entro no banho, saio para atender a porta. Babá chegou. Agora com alguma folga, vibro de prazeres por poder me dedicar à maquiagem e ao cabelo.

Marido chega com camisa amarrotada para passar. Deixo a chapinha pela metade e vou de encontro com seu primo, o ferro elétrico. Alguns minutos depois volto ao banheiro e sou avisada de que em vinte minutos estaremos saindo para a festa. Ele, obviamente, está descansado, engomado e cheiroso.

Não fosse a minha própria imagem estar em jogo, iria assim mesmo: descabelada e desmaquiada, só para encher o marido de vergonha.

Quando o interfone toca estou a cinco minutos de estar razoavelmente pronta. Se a filha não tivesse percebido a saída iminente dos pais e começado um berreiro de partir-corações, diria até que teria chegado no carro da carona sem suspeitas de atraso.

No elevador, ainda escutando os soluços da filha e segurando as próprias lágrimas para não borrar a maquiagem, lembro do perfume que deixei de passar. E eu achando que seria uma daquelas noites de Cinderela, das cinzas para o luxo. Penso no meu livro e na promessa do café e sinto saudades. Talvez fosse melhor nem ir.

Entro no carro e escuto as desculpas dadas à carona pelo companheiro: “Você sabe como as mulheres são enroladas para aprontar.”



quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Papo Sério

Que o mundo é cheio de hipocrisia a gente já sabe. Mas tem hora que não dá para engolir.


Outro dia estava na praça observando uma conversa entre duas mães indignadas com o caso Richthofen. Sim, aquele da menina que ajudou o namorado a assassinar os próprios pais à paulada. Realmente foi caso para muita indignação.


Passado algum tempo uma das mães resolveu que estava tarde e gritou para o filho sair da areia para ir embora. Foram uma... duas... três vezes. Antes da quarta ela se levantou e sacou um grande tapa no bumbum da criança, que foi levada pelo braço parque afora.


Sei que a mesma maioria que fica perplexa diante da violência na televisão ainda, em pleno século XXI, defende a prática do “tapinha” na educação dos filhos. Tirando casos extremos que realmente não perdoam (e destes prefiro nem mencionar), esses pais explicam-se: “O tapinha não dói, é só simbólico”. Símbolo de que limites foram ultrapassados, dizem eles.


Agora me expliquem, senhores pais, se se trata de um elemento meramente simbólico, por que escolher justamente um tapa para representá-lo? Por que não escolher uma palavra, por exemplo? As palavras têm poderes imagináveis, acreditem! Amestradores de filhos parecem esquecer que crianças são seres também racionais. Ao contrário dos animais de circo, crianças não precisam de chicotes para entenderem o que devem ou não fazer. Usemos o dom que foi dado somente à nossa espécie: o dom da palavra.


Ao agredir uma criança simbolicamente a única idéia que uma mãe ou um pai consegue transmitir, ao meu ver, é: “eu sou maior e mais forte que você, um ser pequeno e indefeso. Se você não me obedece, você sofre (mesmo que simbolicamente), ponto final”. Até, é claro, a criança se tornar maior e mais forte que os pais.


Sei que muitas mães e pais defensores do tapinha devem estar magoados com uma acusação assim. Afinal, ninguém tinha a intenção de humilhar nem machucar o filho, não é mesmo? “É só simbólico”.


Pois parem para pensar: um tapa, mesmo sem dor, é um símbolo de violência contra uma pessoa que se ama. Escolham um símbolo menos contraditório, se o que vocês realmente querem é EDUCAR seus filhos.



terça-feira, 11 de agosto de 2009

Gafes Domésticas II : A Panela de Pressão


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Já havia se passado dois meses desde o casamento e a caixa da panela de pressão continuava intocada. Só foi depois de constatar que os níveis de ferro no sangue da minha família estavam baixíssimos que eu resolvi enfrentar a fera e fazer feijão.

Power. Login. Senha. Firefox. Google. Receitas de feijão.

Nenhum mistério. Agora só faltava pegar a caixa no fundo da prateleira mais alta do armário, abri-la, ler as instruções e mãos à obra. Eu disse manual de instruções? Pois bem, a panela não vem com manual de instruções. Essa empresa deveria ser processada por colocar tantos lares em risco. É como comprar uma arma de fogo sem instruções, ou será que essa é mais uma daquelas coisas que a gente deveria nascer sabendo?

Telefone. 031... Mami não atende.
035... Telefone fora do gancho na vovó.
031... Sogra. Finalmente alguém atendeu. Ela, horrorizada pela minha coragem, disse nunca ter lidado com uma panela de pressão. Desejou-me boa sorte e desapareceu da minha casa com um fone no gancho.

Oh meu Deus... e agora? Brasileira, continuei:
031... BINGO! Acabei ligando para a mãe de uma amiga que por sorte já era faixa preta em questão de panela de pressão. Passou-me as instruções que eu repeti várias vezes para não esquecer: água até o preguinho, borrachinha no lugar, fechar bem fechadinho e pronto.

Realmente não tinha grandes mistérios. Tirando, é claro, a parte de colocar a tampa dentro da panela, que me custou uns quinze minutos e alguns palavrões. Depois de muita luta para tentar fazer a tampa entrar num buraco menor que ela, puft, ela entrou sem que eu fizesse força. Parecia até piada e deu quase para ouvir a panela rindo da minha cara.

Superado o obstáculo da tampa, senti-me confiante e pronta para o desafio. Segui as instruções (preguinho-borrachinha-fechadinho) com muita calma e assim que eu liguei o fogo, para meu alívio, nada aconteceu.

E nada continuou acontecendo pelos próximos minutos. Foi então que o terror começou. Eu parecia ter um trem a vapor dentro da cozinha. A panela tremia e soltava fumaça, rancorosa e pronta para explodir em cima de quem quer que cruzasse seu caminho.

Minha vontade era de deixá-la em paz e nunca mais entrar na cozinha até que o gás acabasse ou coisa parecida. Mas de acordo com o www.tudogostoso.com.br, já era hora de desligar o fogo e eu simplesmente teria que ser forte e equilibrada o suficiente para resolver este assunto.

Só por precaução, levei minha filha para o quarto dela e liguei um desenho para segurá-la por lá. Olhei para ela, tão linda, e senti meu queixo tremer. Dei um beijo ligeiro na cabeça dela e aproveitei para sentir o cheiro do seu cabelo. Sai antes que ela percebesse que uma tragédia estava preste a acontecer.

Abri o escritório do meu marido, vi todas as suas coisas e senti um amor profundo por ele.

No caminho de volta, peguei o almofadão da sala, respirei fundo e entrei na cozinha com meu escudo fofo em direção ao fogão. Agora era a hora.

Minha testa suava e meu corpo tremia de adrenalina, acompanhando o tremor da panela que estava ainda mais escandalosa, bufando de raiva. A essa altura o pobre feijão lá dentro já devia ter se dissolvido inteiro. Prendi a respiração, estiquei minha mão e depois, em câmera lenta, meus dedos (encapados com luva de borracha). Apertei meus olhos consciente de que qualquer mosca que passasse por ali seria o suficiente para a panela perder sua paciência. Em fração de segundos eu não só tinha desligado o fogo como já estava do lado de fora da cozinha, jogada no chão do corredor, escondida atrás do almofadão.

Num gesto de quem quer fazer a pazes, a panela foi baixando o tom, parando de rebolar, aquietando, até soltar um último suspiro baixinho e dormir.

Eu mal podia acreditar. Eu tinha vencido a batalha! Eu era a rainha da cozinha e as panelas eram todas minhas súditas.

Corri para os braços da minha filha, ainda assistindo desenho e a enchi de beijos. Saí pulando pela casa me sentindo mais poderosa do que nunca.

Naquele dia almoçamos caldo de feijão.
Desde então os níveis de ferro da família permanecem espetaculares.



sábado, 8 de agosto de 2009

Pais de coração


Quando se apaixonou por mim, eu já era mãe. Aliás, não sei nem como ele me enxergou debaixo deste grande papel que é a maternidade. Afinal, nem eu mesma conseguia me encontrar. Mas encontrou, e me lembrou de quem eu era. Encantou-se pela mulher, sem desrespeitar a mãe que eu adorava ser. Teve orgulho dos meus cuidados como se o filho que eu embalava fosse sempre seu. Soube desde o princípio que eu nunca seria inteiramente sua. Topou a divisão e acabou transformando-a em soma. Soma que quer virar multiplicação.

Conj, desejo que você acorde sabendo que este é o seu dia. Obrigada por caminhar junto comigo.



Feliz dia dos pais também para o meu Papi querido Pedro, meu pai de coração Zé Cláudio e ao meu avô Hugo, que também foi meu pai tantas vezes.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Quinta-feira


Sempre tive pavor à feira. Desde pequena, quando minha mãe me carregava dentro do carrinho de compras e me prometia qualquer guloseima que tivesse lá, que definitivamente não eram muitas, eu odiava o programa. Feiras e afins eram sempre feias, sujas, cheias de tomate podre no chão e folha de alface pisoteada.
Para tentar me entreter, mamãe me concedia a honra de escolher batatas ou cenouras. Arrasada eu ia até a banca, pegava algum saquinho (desses que sempre estão molhados, sabe-se lá porque) e começava a escolher os legumes com as pontinhas dos dedos com medo de que alguma larva ou inseto qualquer viesse me surpreender. Além do que era sempre difícil saber se estava escolhendo certo: ora o legume tinha que ser mais durinho, ora mais molinho... e eu simplesmente não entendia nada daquilo e fazia qualquer coisa para esperar dentro do carro.
Os anos se passaram e logo na primeira semana de casada fui despertada às cinco da manhã com uma barulhada em baixo da janela do meu novo apartamento. Indignada com esses paulistas que não se cansam de trabalhar, abri a janela e me deparei com uma longa e colorida feira se esticando por toda a minha rua.
Engajada em ser boa mãe e esposa, resolvi descer para comprar algumas coisas saudáveis para o almoço. Foi então que tudo mudou.
É completamente diferente fazer a feira quando é você quem vai lavar, descascar, preparar e comer os legumes e verduras. De repente eu percebi aquele cheirinho de fruta fresca que minha mãe tanto gostava. Fui andando e comprando um brócoli ninja aqui, uma banana nanica acolá e quando percebi já estava com os braços gangrenados de tanta sacola. Sorte a minha de morar a apenas alguns passinhos dali. Voltei para casa, recarreguei o meu bolso como quem recarrega uma espingarda e voltei para a caça.
Digo “caça” porque não é nada fácil se dar bem na feira. Você tem que farejar o melhor bando, localizar a melhor presa e correr antes que outra caçadora chegue na sua frente. Neste processo muitos pés sujos de tomate são pisados, ombros chocados... mas tudo vale na lei da feira.
Lá pelas dez da manhã o sol com a ajuda das panelas de óleo das barraquinhas de pastel fazem das lonas coloridas uma verdadeira estufa. É aquele calor insuportável, é batata rolando no chão, é gente se esbarrando, é feirante aos berros cantando seus jingles “Pra ficar legal, a bacia é um real”... Se tivesse areia e cerveja juro que daria pra confundir com um show de axé.