quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Ciclo da boa ação

Quinta-feira era o pior dia da minha semana. Saia de casa meio dia para só retornar às onze horas da noite. Na verdade, trabalhava ‘só’ até as vinte e duas horas, mas tinha que ficar esperando um ônibus para voltar a casa. Não mal digo o tal ônibus porque, apesar da sua demora e suas goteiras e seu mau cheiro e seus bancos mofados, ele era meu único meio de condução e, melhor: condução de volta para minha casa e para minha família. Sempre o adentrava com um sorriso estampado num rosto cansado depois da longa jornada.

Certo dia, após terminada a minha oitava aula, fui à sala dos professores e arrumei minha parafernália para ir embora. Como ainda faltava meia hora para minha carruagem de ferrugem aparecer, resolvi dar uma olhada nos e-mails cuja conta vive ameaçando uma explosão com a imagem de uma dinamite no canto da tela.

Após alguns alertas sobre o perigo da coca-cola, fotos de crianças seqüestradas e ppts para ter um dia lindo, ouvi o ranger da geringonça chegando do lado de fora. Peguei minha bolsa, diários, provas e livros que já estavam a postos e dirigi-me alegre para a rua. Chegando lá encontrei nada além de um cachorro magro e pulguento perambulando pela noite. O ônibus, magoado pelos meus comentários a respeito de seu estado, rebelou-se e foi embora sem mim.

Antes mesmo que eu pudesse buscar no fundo da memória as palavras de mais baixo calão para expressar a minha fúria, avistei um outro ônibus de farol ligado do outro lado da praça que existe em frente à escola. Corri com toda a energia que eu nem sabia que tinha, deixando alguns papéis escaparem e voarem pelos ares, dando vida àquela praça mórbida. Para minha sorte, aquele ônibus ia para a minha cidade e eu não teria que fazer companhia ao cão sarnento da praça durante aquela noite.

"Obrigada Deus, por não deixar uma filha em abando..." Interrompi minha prece de gratidão com a súbita e aterrorizante lembrança de que não tinha sequer um centavo para pagar a passagem de míseros 2 reais e 40 centavos (que naquela circunstância assumiram um valor inestimável). Joguei minhas tralhas ao chão e cai em desespero frente ao motorista do ônibus, que não se sensibilizou com minhas bochechas vermelhas da corrida e meus trajes sujos de giz. Foi então que...

Foi então que ouvi um senhor dizendo que pagaria a minha passagem. Juntei rapidamente meus pertences espalhados e corri para dentro do ônibus. Só depois de acomodados (eu e minhas coisas) olhei para o homem para agradecê-lo. Ele era uma pessoa de idade indefinida.Vestia uma camisa bem passada por dentro de uma calça de cós alto que acentuava sua magreza, com cinto, fivela e uma botina suja de terra. Segurava um chapéu de palha na mão e tirou de dentro do bolso um bolo magro de notas gastas que pareciam estar guardadas lá há uma eternidade. Passei a viagem toda agradecendo ao bom senhor por ter salvado minha noite.

Meia hora depois, ao descermos na rodoviária, insisti que ele me acompanhasse até minha casa que ficava a apenas alguns quarteirões dali. Notando sua resistência, pedi, então, seu endereço para que eu pudesse levar o dinheiro até sua casa no dia seguinte. Foi então que ele me disse que, como pagamento, eu deveria fazer o mesmo quando visse uma outra pessoa em apuros: ajudá-la.

Pensei nas suas palavras ao caminhar até minha casa, e também ao deitar na minha cama, e novamente ao levantar dela.

Desde então, sempre que posso, ofereço caronas a qualquer conhecido que encontro andando pela rua, e ainda não sinto que minha dívida com aquele senhor de botinas sujas e rugas de sol esteja quitada. Se, naquela noite, ele tivesse aceitado caminhar comigo até minha casa para que eu o pagasse, sua boa ação teria terminado naquele mesmo instante. Estaríamos quites e nunca mais pensaria no ocorrido. Mas ao me encarregar de pagar a ajuda ajudando uma outra pessoa, ele deu início a um ciclo da boa ação. E ao ouvir o agradecimento das pessoas que ajudo, digo a elas que façam o mesmo por outros.

Imagino que neste momento, em algum lugar bem longe dessas minas gerais, alguém, em retribuição a uma ajuda não-paga, esteja oferecendo uma carona a uma professora em apuros que acabou de perder o ônibus.



11 comentários:

  1. Oi Nina, adorei seu post, fico feliz de pensar que ainda existem seres bons neste mundão de meudeus!!
    E é realmente como vc disse, se aquele senhor tivesse te acompanhado até sua casa e pego o valor com vc, estaria terminado ali sua benfeitoria!
    Vc é uma ótima pessoa!

    bjinhos

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  2. meNINA..rsrsr..que texto lindo!!
    E vc ainda queria mais palavras?!
    ah flor, é amor demais né mesmo?!
    Amor maior, esse amor de mãe..
    Confesso que quando li ainda nos meus recados o nome "adorável intruso" eu pensei que vc ia falar das pessoas que te visitavam..haha
    MAs ao me deparar com um texto tão lindo, vi que tbm sinto como vc se sentiu..
    Afinal, como pode um serzinho mudar tanto nossa rotina antes mesmo de conhecermos?
    Ai, sem palavras pra dizer oque significa esses sentimentos!
    Adorei a parte que fala que gravida só serve pra esperar/comer/e fazer xixi ri demais!
    Vou linkar vc e indicar esse texto pras mamães seguidoras do meu blog, pode?
    vou esperar sua resposta!
    bjinhos

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  3. Então tah flor..vou reservar um tempinho e fazer um post só pra esse texto da gravidez e os outros vou ler com bastante calma!
    Obrigadinho!!
    bjos

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  4. oi flor..
    primeira vez que passao aqui no seu cantinho que por sinal e lindoo.
    vamos te seguir e amei o posttt..
    bjokasss

    ah passe la pra nos conheçer

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  5. É... eu sei o valor de uma ajuda. Quando eu estou em alguma rodoviária, longe de casa, às vezes fico olhando pro povo a procura de alguém que pareça estar com fome e sem dinheiro, ou desesperado querendo voltar pra casa e não tem condições de o fazer. Fico esperando a oportunidade de ser "a iluminada" que salvou a noite de alguém! hehehe. Porque quando isso acontece, a gente sente uma sensação de realização, felicidade, plenitude, inexplicáveis. Vamos continuar com a corrente do bem, né??? Rs. Beijos!

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  6. Nossa, linda história - e lindo exemplo do senhor, que não apenas pagou a passagem mas plantou em você uma idéia, que agora se espalha entre os leitores, e continua por aí...
    Li seu texto do amadurecimento e é bem aquilo... dói, né? Mas vale a pena!
    Tô linkando, tá?
    Beijo!

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  7. Nina,
    Vi uma indicação no blog de outra Nina e vim conhecer. De cara me encantei com o post, com seu jeito meigo de escrever.
    E saio daqui com mais uma lição assimilada.
    Obrigada.
    Beijos.

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  8. Olá, li o post da Nina (entre mãe e filha) e resolvi fazer uma visita.
    Linda história e linda também sua atitude perante isso.
    Grande beijo!
    Biana França

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  9. QUE TEXTO LINDO!
    Adorei!
    adorei! adorei! (:
    Estou seguindo, e poxa.. vc me fez pensar em tudo isso. Ajudar os outros é sempre bom, mas essa forma dele de fazer propagar a ajuda a outras pessoas, foi especial! :)
    beijinhos!

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  10. que orgulho de ser tua amiga... vivo lendo esse texto e acnhando ele cada vez que leio, mais lindoooo.....bjsss
    fernandinow

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  11. Nina querida! que lindo! estou emocionada! fazemos parte desta "corrente do bem" também costumo dizer o mesmo quando alguém quer me "pagar" por algum favor que fiz do fundo do meu coração!! que bom que vc. entrou na minha vida! e está me ajudando a colori-la ainda mais!
    Beijos a todos! Leopoldo manda beijos pra Princesa!! rsrs
    Ines W. Rudzit

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