quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Excesso de bagagem

Precisa-se de férias urgentemente. Encerrar os compromissos do ano concluindo o que foi possível e dando por vencido o que não foi. Quando as contas a pagar, os quilos a perder, as compras a fazer, os prazos a vencer baterem à minha porta vão encontrar apenas uma placa onde se lê: “fui viajar”.

Procura-se um destino longe. De preferência onde não haja sinal de telefone. Nem wi-fi. Assim poderei desconectar os cabos plugados em minha aorta e ver no que dá. Ou morte ou alívio na pressão arterial, suponho. Quem sabe um país onde sejam proibidos aparelhos eletrônicos em geral, mesmo em modo avião.  Meus registros não mais se limitarão à memória do meu celular e eu poderei viver quantas experiências couberem no meu dia e na minha disposição.

Necessita-se viver experiências de liberdade. Livre dos conselhos de quem já esteve ali e supostamente sabe o que vale e o que não vale a pena fazer. Livre para perder todas as atrações imperdíveis. Livre da necessidade de afirmar para o mundo como sou feliz, em poses manjadas com filtro. Livre inclusive para não viver experiência nenhuma, se calhar.

Deseja-se que este destino abrigue uma cultura avessa, onde os meus padrões de comportamento sejam desengessados logo no desembarque. Ou, quem sabe, um lugar onde não haja padrões aos quais se adaptar. Que seu povo tenha idioma indecifrável, de maneira que eu não entenda a reclamação do taxista, nem a grosseria da recepcionista, nem a lamúria do pedinte, se ali houver essas pessoas. Uma barreira linguística que também me impeça de reclamar, de ser grosseira, de me lamentar. Talvez uma cultura sem povo e ficamos resolvidos.

Almeja-se um destino cujo visto de entrada só seja dado àqueles dispostos a abandonarem suas bagagens, os supérfluos de que ilusoriamente somos constituídos. Despida, neste lugar sem celular (nem wi-fi, loja, ponto-turístico, cultura, idioma ou povo), não me restará nada a fazer além de flutuar à deriva da minha própria existência, como um bebê na simbiose do útero materno. Recobrirei meus instintos mais primitivos, reconciliar-me-ei com minha natureza e deixarei apenas o tempo agir, como nunca deixou de fazer.


Procura-se.


*Ilustração: Sulamith Wulfing

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Por que viajantes são melhores seres humanos

Viajar é uma prática enriquecedora. Fato. Não importa a alta do dólar ou da temporada, o saldo final de qualquer viagem é sempre positivo. O viajante regressa de um destino carregado de conhecimentos históricos, artísticos, políticos, gastronômicos e linguísticos que fazem valer o maior dos investimentos. Se fosse possível pesar toda a “cultura” que se traz de uma viagem, o excesso de bagagem seria certeiro. Isso em si já configura um “upgrade” na existência de qualquer ser humano. Mas há outro benefício em viajar que vai além do acúmulo de repertório, algo que modifica o homem e sua maneira de estar no mundo. Quem viaja encarna, ainda que provisoriamente, um ser incrível: interessado, paciente, livre de preconceitos e amoroso.

O mesmo indivíduo que vai para o aeroporto excomungando o trânsito e dando pontapés na própria mala, aterrissa do outro lado já incorporado pelo maravilhoso espírito de viajante. Arrasta a mala pelo metrô, pelos paralelepípedos, pela areia, escada acima... tudo sem reclames. É como se recebesse uma dose cavalar de energia, mesmo depois de horas intermináveis dentro de um avião. Afinal, ele já está quase lá, no destino almejado, e há muito com o que se ocupar além da mala. O viajante se compromete a apreciar todas as imagens que aparecem pelo itinerário, a começar pelos carros do congestionamento na saída do aeroporto. Dos pontos turísticos aos mendigos nas ruas, tudo merece ser olhado com atenção e, se possível, fotografado. A consciência do “diferente” lubrifica as pálpebras, ajusta os graus, limpa da lente ocular os pré-conceitos.

Há uma enorme beleza para ser admirada no cotidiano alheio, os viajantes de corpo e alma crêem. As crianças indo para a escola, os homens de negócio nas avenidas, as mulheres cansadas no metrô. O viajante sente desejo de conversar com todas essas personagens estrangeiras, embora raramente o faça, seja por timidez ou falta de recurso. Então distribui sorrisos gratuitos e, quando recebe uma piscadela de volta, sente-se como um infiltrado naquele excitante mundo novo. O viajante procura estabelecer essas conexões arriscando um diálogo onde quer que a oportunidade apareça: na porta do elevador, na fila do fast food, no banco da praça.  Para tal, ele logo se ocupa em aprender as palavrinhas mágicas no idioma do país que visita.  Já no primeiro dia está fluente no “por favor”, “obrigado”, “desculpe-me”, “bom dia” e “boa noite” e procura usar esse vocabulário com determinação, pois adora brincar que faz parte do lugar a que não pertence.  

“Determinação”, na verdade, é o segundo nome do viajante. Ele costuma ter metas bem definidas de lugares a se visitar. Não importa que tenha que atravessar meia cidade, escalar uma montanha, pegar duas balsas e subir 837 degraus. Cada gota de suor significa maior proximidade da chance de tirar aquela foto-fetiche que ficará para posteridade. A alegria do viajante aumenta proporcionalmente à sua canseira. Ele chega ao fim de cada dia absolutamente exaurido, com bolhas nos pés, e feliz. Haja otimismo! Aliás, tá aí uma coisa que não falta ao viajante: a capacidade de ver o lado bom de tudo. Ele debocha de si mesmo o tempo todo: pega o trem errado e tem uma crise de riso, toma chuva e posa pra foto molhado, fica perdido e tira uma selfie olhando com cara de interrogação para o mapa.


É mesmo uma pena que o espírito de viajante desencarna em território nacional, despedindo-se logo ali, nas esteiras onde as bagagens demoram tempo demais para aparecer. Que bom seria se conseguíssemos nos manter encarnados, com a mesma disposição para percorrermos nossos caminhos de cada dia. Que interessante seria permanecer com os olhos abertos, enxergando a beleza de tudo o que nos cerca. Que estimulante seria correr atrás dos nossos objetivos rindo das nossas próprias falhas nos obstáculos que nos separam da vitória. Que incrível seria se usássemos as palavrinhas mágicas e distribuíssemos sorrisos excessivamente. Que lindas seriam nossas relações afetivas, se nunca deixássemos de tentar estabelecer conexões, ainda que faltassem palavras para tal. Que ótimo seria para nós, todos de passagem nesta vida, se permanecêssemos constantemente abertos para o novo e maravilhados pelo fato de sermos diferentes. 



 Para os meus amigos que nasceram turistas no planeta Terra.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

FRATERNIDADE INTERROMPIDA

A mulher que perde o marido fica viúva. O filho que perde os pais fica órfão. A mãe que perde o filho fica algo que palavra nenhuma consegue traduzir. E como fica quem perde o único irmão?
Perceber-se sozinho no galho da árvore genealógica trouxe, primeiramente, um vazio enorme.  Minha família obedecia aos padrões da época: meus pais se casaram e tiveram um casal de filhos, assim como a maioria das pessoas. Sendo a filha caçula, nasci imersa na condição de compartilhamento. Aliás, antes mesmo de nascer, já crescia num útero que não era minha casa própria, mas lar herdado do irmão mais velho.  Fui amamentada em seio já calejado, dormi em berço de segunda mão. Meus pais sempre foram nossos pais. Dividíamos o mesmo teto, o mesmo colo, a mesma sobremesa. Meus livros de escola sempre tinham sido dele. Eu aceitava as minhas metades com contentamento, porque não sabia o que era ter inteiros.
Mesmo quando ganhei um quarto só meu, com móveis planejados e tudo o mais, preferi continuar compartilhando o quarto com meu irmão. À noite, deitada na cama ao seu lado, olhávamos para as estrelas fluorescentes pregadas no teto. Meu pai teve o cuidado de distribuir a mesma quantidade de estrelas nas metades do quarto. Do meu lado, só eu tinha a Lua. Mas do lado de lá, só ele tinha Saturno. Um dia, depois de uma briga cujo motivo eu não lembraria dois dias depois, Hugo pegou uma chave de fenda e desmontou minha cama. Quando cheguei no quarto vi um amontoado de madeiras encostado na parede e uma pilha de parafusos espalhados pelo chão. Ele queria ser inteiro e eu não sabia o que ser sem ele.
Desde minha estreia na vida ele esteve presente. A construção dos meus interesses e opiniões se sucedeu à fala dele, categorizando o que era chato e o que era legal. Apesar de nossas personalidades diferentes, eu sabia quais escolhas Hugo aprovaria e quais outras ele condenaria. Obedeci à sua tirania silenciosa sem me sentir vassala, porque ele era parte de mim, como uma consciência pousada sob o ombro.
Ainda hoje, em dias de saudade, enxugo minhas lágrimas porque sei que ele as repreenderia. Diria, sem paciência, para eu largar de frescura. Engulo o choro com a mesma determinação de criança, quando eu apertava o passo para poder caminhar ao lado dele. Embora eu jamais quisesse decepcioná-lo, porém, há dias em que me deixo aproveitar da sua ausência e choro sem censuras.
Se por um lado continuo ouvindo os ecos daquela personalidade, por outro fico carente de sua fala. Os assuntos que eram comuns a nós dois passaram a ser só meus. Não escuto mais a sua voz desdenhando nossos problemas familiares e então fico sem saber medir a gravidade das situações. Antes, diante de um drama materno, ele tinha o dom de acabar com todas as minhas preocupações dizendo algo como “Deixa pra lá, você sabe com a mãe é exagerada”.
Só o Hugo compartilhava a minha história. Só ele teve o mesmo pai que eu tive. Só ele teve a mesma mãe. Só ele viveu nos mesmos lugares e épocas em que eu vivi. Só ele recebeu a mesma educação que eu recebi. Só ele conhecia os ritmos da nossa casa, os afetos da nossa família. De todas as pessoas que habitaram, habitam ou habitarão este planeta, só ele poderia entender a minha história partindo do mesmo ponto de vista, embora tivéssemos percepções diferentes das mesmas paisagens.
No primeiro mês depois de sua partida, sonhei que estava na frente de um colégio, de mochila nas costas e fichário na mão. Ficava na ponta dos pés tentando localizar meu irmão no meio da multidão de alunos. Procurava, procurava e procurava, sem encontrá-lo jamais. Excelente metáfora que meu inconsciente encontrou para reproduzir o que meu coração não sabia expressar.
Eu, sempre tímida, encarei os desafios da vida sem dramas porque tinha o meu irmão mais velho sempre ao lado. Primeiro dia de aula, escola nova, festas de aniversário de pessoas desconhecidas... nada me abalava porque tinha sua companhia garantida. Ele, extrovertido, fazia amigos por nós dois. Enquanto ele me excluía das brincadeiras dizendo que eu era café-com-leite, eu recebia suas privações de bom grado, como um ser frágil que se vê protegido publicamente.
Agora estava diante do mais grave drama familiar e sentia a necessidade da sua presença para me ajudar a resolver tantas questões. Queria vê-lo agir, para também saber como lidar com a dor dos meus pais. Queria sentir sua firmeza para tratar de todas as questões burocráticas que se faziam necessárias. Queria saber, eu mesma, que rumo dar à minha vida... Tantas vezes obedeci aos impulsos de ir até o quarto dele, ou de discar seu número de telefone, para logo em seguida me lembrar de que era a sua própria morte a causadora de todas as minhas aflições.

Nestes instantes de súbita consciência da falta, sentia-me como se fosse violentamente empurrada de um precipício e caísse em queda livre. Como é difícil ser privado de esperanças! Não havia nada para me consolar. Não havia notícia que eu pudesse esperar, nem milagres a desejar. O fato estava consumado e não poderia ser pior. Eu estava só, segurando firmemente a linha arrebentada daquela fraternidade interrompida.
(2013)

sábado, 24 de janeiro de 2015

O luto e o tempo

Um ano. Quem já perdeu alguém diz que o luto precisa conhecer as quatro estações antes de afrouxar suas rédeas. É necessário conhecer a vida na ausência do outro: aniversários, Natal, ano novo, dia dos pais, dia das mães... Só depois de um ano o coração desiste de esperar pela volta daquele que foi e, então, parte por outras buscas.
Dias de ansiedade antecediam as datas festivas. Minha dor era "maior que o mundo", mas era mais fraca que o tempo que continuava a trazer novos dias. Junto com eles, vinham as lembranças ainda recentes de um tempo em que éramos completos. Ano passado ele me deu tal presente. Ano passado ele estava em tal lugar. Ano passado comemoramos de tal maneira.
 Depois de trezentos e sessenta e cinco rodopios em volta do próprio eixo, completávamos a grande volta solar e chegávamos, enfim, àquele mesmo ponto espacial. A disposição dos astros nos devolvia a gravidade de outrora anunciando o seu primeiro aniversário de morte.
A todo instante eu olhava no relógio e experimentava um certo alívio. 12:00. Ele ainda estava vivo. Como será que ele se sentia aquele dia? O que ele comeu naquele último café da manhã? 12:45. Ele ainda estava trabalhando. Quais planos ele tinha para a empresa? 13:00. Ele ainda estava em casa. Quais foram os últimos objetos que ele tocou antes de sair de casa? 14:00. Ele estava se preparando para viajar. Será que ele pressentiu qualquer coisa? Será que sentiu alguma angústia ao sair de casa? 14:30. Ele estava com os amigos. Ele amava os amigos. Ele estava feliz. 14:55. Ele estava viajando. Não vá, meu irmão. Escute-me! Não siga viagem! 15:00. (…)
15:01. O ano estava concluído. À minha volta a mesma ausência presente, a mesma dor impregnada nas paredes, a mesma saudade exalando dos objetos. Hugo acabava de morrer novamente na minha lembrança sem que eu nada pudesse fazer para impedi-lo. Ainda estava muito longe de superar. Não dava para aceitar. Mas era hora de começar a acreditar.
No dia seguinte acordei com o coração mais leve, com uma repentina disposição para iniciar o novo ciclo que se estendia à minha frente, com novos desafios e diferentes propósitos. O desejo de trazê-lo de volta cedeu lugar, naturalmente, ao desejo de aceitá-lo distante. Desejo de fazer as pazes com a realidade que ele deixou.
Isso não é dizer que a dor passou. Nem que a dor abrandou. A morte do meu irmão continua sendo igualmente terrível e não acredito que será diferente nos próximos anos. Apenas me acostumei com sua ardência, assim como os casais que, ao compartilharem uma vida inteira sob o mesmo teto, passam a não se comover e nem se perturbar com a presença um do outro, embora saibam-se lado a lado. A dor habita todos os lugares em que eu esteja. Mas ao contrário do início de nosso trágico relacionamento, ela já me permite realizar minhas pequenas ações cotidianas sem pranto.
Antes dos 365 dias, quando vivia um instante de alegria – porque sim, momentos alegres continuaram acontecendo apesar de tudo -  eu logo estranhava os músculos da face abrindo num sorriso raro. Ao experimentar os hormônios da felicidade fazendo cócegas pelas minhas veias eu esquecia da tristeza, ainda que por uma fração de segundos. Impulsionada pelo estranhamento eu logo me perguntava por que é que eu estava triste mesmo? Então eu lembrava. Lembrava e me surpreendia novamente com a tragicidade da notícia.
Não poderia numerar quantas vezes a mesma notícia me pegou de surpresa. Noite passada sonhei que o via abrir os olhos. Eu dava pulos de alegria e mal conseguia gritar para os meus pais que o Hugo estava vivo novamente. Acordei e me deparei com a realidade inabalada. Hugo continuava morto. Pega de surpresa novamente.
Ao contrário dos primeiros meses, porém, suportei as contrações do meu coração sem fazer brotar lágrimas. Levantei da cama e fiz tudo o que tinha que fazer, embora lembrasse daquele movimento de pálpebras abrindo a cada instante.
Antes eu talvez não conseguisse me levantar. Nem tampar a fonte das lágrimas. Antes, se eu lembrasse da morte do Hugo enquanto caminhava na rua, por exemplo, meu passo ficava mais lento, a espinha curvada para o chão, como se me caísse sobre os ombros uma imensa carga pesada. Durante muito tempo tive a sensação de ter morcegos com os dentes cravados em meu pescoço, sugando meu sangue e me tirando as forças para realizar o mais simples movimento.
Mas depois do primeiro ano ficou diferente. Os sustos acontecem da mesma maneira, mas a dor ficou menos pesada. Passou a caber dentro de mim. Hoje a dor é mais silenciosa, mais íntima. Hoje a dor tem mais respeito por mim, permite-me muitos instantes de alegria sempre ascendente, alegria não interrompida. Hoje tenho, inclusive, medo da dor passar.
Sofrer a falta do meu irmão é a maneira de tê-lo presente em minha vida.  É como se houvesse um espaço vago constantemente a me lembrar da sua ausência. Porém, é sofrendo a ausência que o tenho por perto. Deixar de sentir sua falta seria perder nosso último elo, um elo chamado saudade.
Porque não me bastaria lembrar do meu irmão somente diante de um retrato. Não quero a “saudade boa”, de que as pessoas tanto falam. Quero a saudade latente, essa que me acorda os sentidos, que acelera o coração e aquece o sangue. Quero, como na noite passada, vê-lo abrir os olhos detalhadamente, com a nitidez que só a falta dolorosa é capaz de criar.
Para manter a saudade forte, alimento a falta com frequência. Aproveito meus instantes de solidão para me machucar com lembranças bonitas. Torturo-me com fotos, com vídeos, com objetos. Rezo. E choro, pela tristeza de não tê-lo mais. Mas choro, também, pela alegria de tê-lo sempre.
(2013)

                 
*ilustração Clara Gavilan