A
mulher que perde o marido fica viúva. O filho que perde os pais fica órfão. A
mãe que perde o filho fica algo que palavra nenhuma consegue traduzir. E como
fica quem perde o único irmão?
Perceber-se
sozinho no galho da árvore genealógica trouxe, primeiramente, um vazio
enorme. Minha família obedecia aos
padrões da época: meus pais se casaram e tiveram um casal de filhos, assim como
a maioria das pessoas. Sendo a filha caçula, nasci imersa na condição de
compartilhamento. Aliás, antes mesmo de nascer, já crescia num útero que não
era minha casa própria, mas lar herdado do irmão mais velho. Fui amamentada em seio já calejado, dormi em
berço de segunda mão. Meus pais sempre foram nossos pais. Dividíamos o
mesmo teto, o mesmo colo, a mesma sobremesa. Meus livros de escola sempre tinham
sido dele. Eu aceitava as minhas metades com contentamento, porque não sabia o
que era ter inteiros.
Mesmo
quando ganhei um quarto só meu, com móveis planejados e tudo o mais, preferi
continuar compartilhando o quarto com meu irmão. À noite, deitada na cama ao
seu lado, olhávamos para as estrelas fluorescentes pregadas no teto. Meu pai
teve o cuidado de distribuir a mesma quantidade de estrelas nas metades do
quarto. Do meu lado, só eu tinha a Lua. Mas do lado de lá, só ele tinha
Saturno. Um dia, depois de uma briga cujo motivo eu não lembraria dois dias
depois, Hugo pegou uma chave de fenda e desmontou minha cama. Quando cheguei no
quarto vi um amontoado de madeiras encostado na parede e uma pilha de parafusos
espalhados pelo chão. Ele queria ser inteiro e eu não sabia o que ser sem ele.
Desde
minha estreia na vida ele esteve presente. A construção dos meus interesses e
opiniões se sucedeu à fala dele, categorizando o que era chato e o que era
legal. Apesar de nossas personalidades diferentes, eu sabia quais escolhas Hugo
aprovaria e quais outras ele condenaria. Obedeci à sua tirania silenciosa sem
me sentir vassala, porque ele era parte de mim, como uma consciência pousada
sob o ombro.
Ainda
hoje, em dias de saudade, enxugo minhas lágrimas porque sei que ele as
repreenderia. Diria, sem paciência, para eu largar de frescura. Engulo o choro
com a mesma determinação de criança, quando eu apertava o passo para poder
caminhar ao lado dele. Embora eu jamais quisesse decepcioná-lo, porém, há dias
em que me deixo aproveitar da sua ausência e choro sem censuras.
Se
por um lado continuo ouvindo os ecos daquela personalidade, por outro fico
carente de sua fala. Os assuntos que eram comuns a nós dois passaram a ser só
meus. Não escuto mais a sua voz desdenhando nossos problemas familiares e então
fico sem saber medir a gravidade das situações. Antes, diante de um drama
materno, ele tinha o dom de acabar com todas as minhas preocupações dizendo
algo como “Deixa pra lá, você sabe com a mãe é exagerada”.
Só
o Hugo compartilhava a minha história. Só ele teve o mesmo pai que eu tive. Só
ele teve a mesma mãe. Só ele viveu nos mesmos lugares e épocas em que eu vivi.
Só ele recebeu a mesma educação que eu recebi. Só ele conhecia os ritmos da
nossa casa, os afetos da nossa família. De todas as pessoas que habitaram,
habitam ou habitarão este planeta, só ele poderia entender a minha história
partindo do mesmo ponto de vista, embora tivéssemos percepções diferentes das
mesmas paisagens.
No
primeiro mês depois de sua partida, sonhei que estava na frente de um colégio,
de mochila nas costas e fichário na mão. Ficava na ponta dos pés tentando
localizar meu irmão no meio da multidão de alunos. Procurava, procurava e
procurava, sem encontrá-lo jamais. Excelente metáfora que meu inconsciente
encontrou para reproduzir o que meu coração não sabia expressar.
Eu,
sempre tímida, encarei os desafios da vida sem dramas porque tinha o meu irmão
mais velho sempre ao lado. Primeiro dia de aula, escola nova, festas de
aniversário de pessoas desconhecidas... nada me abalava porque tinha sua
companhia garantida. Ele, extrovertido, fazia amigos por nós dois. Enquanto ele
me excluía das brincadeiras dizendo que eu era café-com-leite, eu recebia suas
privações de bom grado, como um ser frágil que se vê protegido publicamente.
Agora
estava diante do mais grave drama familiar e sentia a necessidade da sua
presença para me ajudar a resolver tantas questões. Queria vê-lo agir, para
também saber como lidar com a dor dos meus pais. Queria sentir sua firmeza para
tratar de todas as questões burocráticas que se faziam necessárias. Queria
saber, eu mesma, que rumo dar à minha vida... Tantas vezes obedeci aos impulsos
de ir até o quarto dele, ou de discar seu número de telefone, para logo em
seguida me lembrar de que era a sua própria morte a causadora de todas as
minhas aflições.
Nestes
instantes de súbita consciência da falta, sentia-me como se fosse violentamente
empurrada de um precipício e caísse em queda livre. Como é difícil ser privado
de esperanças! Não havia nada para me consolar. Não havia notícia que eu
pudesse esperar, nem milagres a desejar. O fato estava consumado e não poderia
ser pior. Eu estava só, segurando firmemente a linha arrebentada daquela
fraternidade interrompida.
Que texto lindo. Tenho dois irmãos e nem posso imaginar o tamanho da dor de viver sem eles. Que o tempo faça seu trabalho e te ajude a tornar o peso dessa ausência um pouco mais leve. Bj
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ResponderExcluirthank you
سعودي اوتو