Um ano. Quem já perdeu alguém diz
que o luto precisa conhecer as quatro estações antes de afrouxar suas rédeas. É
necessário conhecer a vida na ausência do outro: aniversários, Natal, ano novo,
dia dos pais, dia das mães... Só depois de um ano o coração desiste de esperar
pela volta daquele que foi e, então, parte por outras buscas.
Dias de ansiedade antecediam as
datas festivas. Minha dor era "maior que o mundo", mas era mais fraca que o tempo
que continuava a trazer novos dias. Junto com eles, vinham as lembranças ainda
recentes de um tempo em que éramos completos. Ano passado ele me deu tal
presente. Ano passado ele estava em tal lugar. Ano passado comemoramos de tal
maneira.
Depois de trezentos e sessenta e cinco rodopios em
volta do próprio eixo, completávamos a grande volta solar e chegávamos, enfim,
àquele mesmo ponto espacial. A disposição dos astros nos devolvia a gravidade
de outrora anunciando o seu primeiro aniversário de morte.
A todo instante eu olhava no
relógio e experimentava um certo alívio. 12:00. Ele ainda estava vivo. Como
será que ele se sentia aquele dia? O que ele comeu naquele último café da
manhã? 12:45. Ele ainda estava trabalhando. Quais planos ele tinha para
a empresa? 13:00. Ele ainda estava em casa. Quais foram os últimos
objetos que ele tocou antes de sair de casa? 14:00. Ele estava se
preparando para viajar. Será que ele pressentiu qualquer coisa? Será que
sentiu alguma angústia ao sair de casa? 14:30. Ele estava com os amigos. Ele
amava os amigos. Ele estava feliz. 14:55. Ele estava viajando. Não vá,
meu irmão. Escute-me! Não siga viagem! 15:00. (…)
15:01. O ano estava concluído. À
minha volta a mesma ausência presente, a mesma dor impregnada nas paredes, a
mesma saudade exalando dos objetos. Hugo acabava de morrer novamente na minha
lembrança sem que eu nada pudesse fazer para impedi-lo. Ainda estava muito
longe de superar. Não dava para aceitar. Mas era hora de começar a acreditar.
No dia seguinte acordei com o
coração mais leve, com uma repentina disposição para iniciar o novo ciclo que
se estendia à minha frente, com novos desafios e diferentes propósitos. O
desejo de trazê-lo de volta cedeu lugar, naturalmente, ao desejo de aceitá-lo
distante. Desejo de fazer as pazes com a realidade que ele deixou.
Isso não é dizer que a dor
passou. Nem que a dor abrandou. A morte do meu irmão continua sendo igualmente
terrível e não acredito que será diferente nos próximos anos. Apenas me
acostumei com sua ardência, assim como os casais que, ao compartilharem uma
vida inteira sob o mesmo teto, passam a não se comover e nem se perturbar com a
presença um do outro, embora saibam-se lado a lado. A dor habita todos os
lugares em que eu esteja. Mas ao contrário do início de nosso trágico relacionamento,
ela já me permite realizar minhas pequenas ações cotidianas sem pranto.
Antes dos 365 dias, quando
vivia um instante de alegria – porque sim, momentos alegres continuaram
acontecendo apesar de tudo - eu logo
estranhava os músculos da face abrindo num sorriso raro. Ao experimentar os
hormônios da felicidade fazendo cócegas pelas minhas veias eu esquecia da
tristeza, ainda que por uma fração de segundos. Impulsionada pelo estranhamento
eu logo me perguntava por que é que eu estava triste mesmo? Então eu
lembrava. Lembrava e me surpreendia novamente com a tragicidade da notícia.
Não poderia numerar quantas
vezes a mesma notícia me pegou de surpresa. Noite passada sonhei que o via
abrir os olhos. Eu dava pulos de alegria e mal conseguia gritar para os meus
pais que o Hugo estava vivo novamente. Acordei e me
deparei com a realidade inabalada. Hugo continuava morto. Pega de surpresa
novamente.
Ao contrário dos primeiros
meses, porém, suportei as contrações do meu coração sem fazer brotar lágrimas.
Levantei da cama e fiz tudo o que tinha que fazer, embora lembrasse daquele
movimento de pálpebras abrindo a cada instante.
Antes eu talvez não conseguisse
me levantar. Nem tampar a fonte das lágrimas. Antes, se eu lembrasse da morte
do Hugo enquanto caminhava na rua, por exemplo, meu passo ficava mais lento, a
espinha curvada para o chão, como se me caísse sobre os ombros uma imensa carga
pesada. Durante muito tempo tive a sensação de ter morcegos com os dentes
cravados em meu pescoço, sugando meu sangue e me tirando as forças para
realizar o mais simples movimento.
Mas depois do primeiro ano
ficou diferente. Os sustos acontecem da mesma maneira, mas a dor ficou menos
pesada. Passou a caber dentro de mim. Hoje a dor é mais silenciosa, mais
íntima. Hoje a dor tem mais respeito por mim, permite-me muitos instantes de
alegria sempre ascendente, alegria não interrompida. Hoje tenho, inclusive,
medo da dor passar.
Sofrer a falta do meu irmão é a
maneira de tê-lo presente em minha vida.
É como se houvesse um espaço vago constantemente a me lembrar da sua
ausência. Porém, é sofrendo a ausência que o tenho por perto. Deixar de sentir
sua falta seria perder nosso último elo, um elo chamado saudade.
Porque não me bastaria lembrar
do meu irmão somente diante de um retrato. Não quero a “saudade boa”, de que as
pessoas tanto falam. Quero a saudade latente, essa que me acorda os sentidos,
que acelera o coração e aquece o sangue. Quero, como na noite passada, vê-lo
abrir os olhos detalhadamente, com a nitidez que só a falta dolorosa é capaz de
criar.
Para manter a saudade forte,
alimento a falta com frequência. Aproveito meus instantes de solidão para me
machucar com lembranças bonitas. Torturo-me com fotos, com vídeos, com objetos.
Rezo. E choro, pela tristeza de não tê-lo mais. Mas choro, também, pela alegria
de tê-lo sempre.
(2013)
*ilustração Clara Gavilan
Nossa...é isso! Não se preocupe, a saudade não passa!
ResponderExcluirBju,
Nanda.
Suas palavras traduzem muito bem o sentimento de perda. Sempre digo que esta dor vira saudade... saudade que levamos para o resto dos nossos dias..
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