quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Porque sou mãe


                “Ser mãe é padecer no paraíso”, diz a sabedoria popular. Ainda na sala de parto é possível vivenciar um pouco do céu e do inferno que é a maternidade. Frequente é o testemunho de mães que, ao segurarem seus filhos pela primeira vez, sentiram um quase incompreensível misto de alegria e angústia.  Alegria, por participar tão intimamente do milagre da vida. Angústia, por se dar conta do termo de responsabilidade que se assina ali, com tinta vermelho-sangue.

                Pele fina, olhar perdido, queixinho tremido, mãos em miniatura... a primeira visão do filho é capaz de fazer estremecer a mais dura das mulheres e de tornar perverso o mais maravilhoso dos mundos. Seu bebê está ali, filhote dependente, ser de limites. O mundo aguarda do lado de fora, com um sorriso de canto de boca, mostrando os dentes afiados e debochando da nossa fragilidade.

                Mas a gente topa o desafio sem titubear. Tornamo-nos vassalas contentes de pequenos príncipes e princesas e assim seguimos em nossa difícil e maravilhosa missão até o último dia de nossas vidas, padecendo no paraíso.

                Pelo menos assim tem sido desde o nascimento da minha filha, há quase oito anos. Julguei já ser veterana na arte de ser mãe quando me vi grávida do meu segundo filho. Eu não só já sabia dos desafios que me aguardavam como os tirava de letra. Acreditei, inocentemente, que poderia me livrar da angústia e receber meu bebê com o coração completo de alegria.

                Talvez – ou certamente – por ter vivenciado uma situação de perda trágica um mês antes de dar a luz, recebi meu filho com um coração alegre, sim, mas também muito, muito angustiado.  Durante a vida fui testemunha dos cuidados que minha mãe teve com seus filhos e, ainda assim, o destino ignorou seus trinta anos de dedicação completa e terminou com a vida do meu irmão em uma fração de segundo. E foi com esse sentimento preso na garganta que eu segurei meu bebê pela primeira vez.

                Justo quando eu precisava vestir meus trajes de super-mulher, tive a experiência recente com o dedo na minha cara desnudando minha insignificância. E então eu chorei. Pelo meu filho. Por mim. Pela humanidade. Mas, como disse uma vez meu pai, não está são aquele que desiste de ser feliz. E felicidade, para mim, são meus dois filhos. Portanto aí vai:

                Ainda que o mundo seja cruel, afio minhas garras de fêmea feroz. Ainda que eu não controle o destino, coloco-me de pé diante das forças da natureza e do acaso. Ainda que eu seja insignificante em meio ao universo, desafio todos os deuses. Ainda que eu seja feita de limites, ignoro-os. Ainda que minha própria história diga-me que sou incapaz, faço ecoar meu grito de guerreira.

                Porque hoje estou viva.  E porque sou mãe. 



*Imagem daqui.

**Obrigada pela paciência de todas as pessoas nesse período de silêncio e principalmente obrigada pelo incentivo de tantos que não me deixaram parar de escrever. 

sábado, 3 de março de 2012

Minhas reticências...

Ainda no velório, algumas pessoas se aproximaram dizendo que eu logo escreveria sobre a trágica morte do meu único irmão. Tais comentários me soavam completamente descabidos, tamanha era a minha convicção de que eu jamais, em hipótese e de maneira alguma, me submeteria a reviver tamanha dor. Poucos dias depois me surpreendi formando frases mentalmente e desfazendo-as em seguida, com medo do que elas pudessem revelar – assim como os sonhos que dão passagem para nosso inconsciente sem censura nem piedade. 

Primeiro pensei em escrever sobre a grandeza dessa dor. Procurei metáforas, mas logo percebi que a dor de perder alguém que se ama assim, subitamente e para sempre, é algo inominável. Não acredito sequer que tal sentimento caiba numa palavra tão pequena:  D, O, R. Talvez ela seja melhor expressada por uma anti-palavra, ou no máximo por reticências, os três pontos que se abrem para o infinito. 

Pensei em escrever sobre os pensamentos que antecederam o acidente, os pesadelos que já anunciavam a morte que eu, cega pela vida, não pude enxergar. Mas do que adiantaria redigir um dossiê de prenúncios, depois que o destino já impôs sua vontade e nada posso fazer para mudá-lo?

Pensei em escrever sobre os momentos mais intensos já vividos, como o longo minuto que durou a minha entrada pelo corredor daquele hospital, de mãos dadas com meus pais, rumo à pior notícia de nossas vidas. Mas imaginei que essa memória, quem sabe com o tempo, tivesse a sorte de ser esquecida. Assim preferi não registrá-la, deixá-la livre para se perder.

Pensei em escrever sobre a difícil tarefa de lidar com o peso da vida e da morte ao mesmo tempo.  Se tenho o dom de gerar vida em meu ventre, por que não pude fazer nada diante do corpo, ainda tão lindo, do meu irmão? Envergonhada da minha impotência e minha insignificância, desisti também deste texto.

Pensei, então, em escrever sobre Deus e a indignação que se instalou entre nós dois. Escrever sobre a coragem que cresceu em mim, fazendo-me capaz de desafiar Sua vontade como se fosse humano. Vontade de apagar Suas linhas tortas e ordenar que Ele reescrevesse minha história e da minha família sem esse erro terrível que seremos obrigados a carregar conosco até nossos últimos dias. Mas logo me peguei entregue a Ele, de uma forma nova e completa, pedindo Seu colo e afago de bom Pai, porque minhas forças  já tinham me exaurido. Brigar com Deus já não faria mais sentido. 

Pensei em escrever sobre a condição das estradas brasileiras, sobre o sofrimento compartilhado que une pessoas da maneira mais surpreendente possível, sobre a presença enorme que a ausência assume na vida de quem ficou. Ou então sobre a importância da solidariedade dos amigos, sobre minha vontade de carregar meus pais no colo e soprar suas feridas, assim como eles faziam antigamente. Escrever sobre a solidão de ter um sobrenome agora só meu e sobre o pânico de pensar que em breve eu o alcançarei na idade, como sempre brincávamos todos os anos de nossas vidas. Escrever sobre as vezes que peguei o telefone com vontade de ligar para o “departamento responsável”, constatar minha insatisfação e exigir um novo destino, uma outra história. Escrever sobre a fatalidade sorrateira que engana até a ordem da natureza. Escrever sobre tantas coisas que me embriagaram neste último mês. Mas ainda que minha dor – ou minhas reticências – se manifeste de tantas formas, tudo se torna pequeno diante do fato final, que é a morte. Esse mistério maior que cala todos os questionamentos, que nos tira o fôlego e a palavra. Diante das minhas intenções de escrita, vejo que não me resta outra coisa a não ser assumir, humildemente, minha incapacidade de compreender ou sequer relatar esta terrível experiência. 

Tive a melhor ideia até então, que era a de escrever sobre meu irmão da maneira mais otimista possível. Mesmo porque ele não gostaria, eu bem sei, de homenagens fúnebres e deprimidas. Hugo nem combinaria com um texto assim, da mesma forma que não combina com a morte. Melhor seria escrever sobre a intensidade da sua vida, sobre a forma com que ele conquistou tantas centenas de pessoas  que tiveram a sorte de conhecê-lo nos trinta anos de sua breve vida. Escrever sobre como ele foi lindo desde o dia em que nasceu,  sobre sua fidelidade e coragem. Mas ainda que eu escolhesse as palavras mais bonitas, as lembranças mais tocantes, ninguém que já não o conhecia teria ideia de quem ele foi. Ninguém o amaria como ele merece ser amado, nem sofreria sua perda como eu sofro. Prefiro, então, conservar meu irmão só para mim, nas lembranças de uma infância que agora não tenho mais com quem compartilhar e que vou guardar sozinha. Tesouro pesado e precioso.

 
Imagem de Kaidi Kriel