quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Tietagem tardia

Ainda que dez anos depois, pude facilmente reconhecer aquele nome na tela de computador, entre mil e um anúncios culturais. Minha banda favorita estaria de volta em território nacional depois de um longo período longe dos holofotes.  Coração disparado bombeou para mente deliciosas recordações adolescentes: o cheiro da caneta metálica (quem lembra?) com que eu decorava as pastas de fotos e matérias da banda, os micro detalhes das capas de CD que eu admirava sem cansar, o sentimento de orgulho quando algum clipe ficava em primeiro lugar no disk MTV. Sem falar, é claro, dos muitos e muitos sonhos tecidos pela minha mente imatura e desocupada.

                Os tempos agora eram outros. Formada, casada e mãe (não necessariamente nesta ordem), tinha responsabilidades o suficiente para não conseguir ouvir sequer uma música do início ao fim.  Tinha a certeza, porém, que merecia um último esforço de tietagem. Afinal, foram anos a fio de sonhos não concretizados, centenas de reais gastos com caríssimas revistas importadas, noites inteiras em claro baixando as raras e pesadas fotos na internet (que a gente só podia conectar entre meia noite e seis da manhã). Eu sempre soube que era a fã número um e me contorcia de ciúmes quando via pseudo-fãs conhecendo a banda pessoalmente em programas de televisão no meu lugar. Agora era a minha vez.

                Estava diante da chance de realizar aquele sonho adolescente e fechar com chave de ouro, ainda que tardiamente, este capítulo da minha vida: tinha o dinheiro para comprar o melhor lugar da platéia; estava morando em São Paulo e poderia acompanhar todos os passos da banda com total domínio de território. Além do que, depois de tantos anos, a banda não estava mais em evidência e a concorrência não seria tão acirrada como da primeira vez. (Parênteses para falar do primeiro show no Brasil: depois de um dia inteiro na fila os portões se abriram para poucos milhares de meninas enfurecidas. Praticamente um estouro de boiada, com várias vítimas pelo caminho. Segurança local não dá conta, chega polícia militar para tentar colocar a ordem no recinto. No meio da multidão, era possível tirar os pés do chão sem cair. Se você entrasse com os braços para baixo, colados ao corpo, assim eles ficariam até o fim do show. A pressão era tanta que sentia minhas costelas se entrelaçar, como duas mãos de dedos cruzados. Achei, em diversos momentos, que iria morrer. Ou esmagada. Ou de alegria).

                Poucos dias depois me deparo com um teste positivo para gravidez. Dois, três, quatro, cinco, seis, sete... Estaria com sete meses no dia do show.  Sete meses significava barriga grande. Significava, também, uma fã com dor nas costas lá no fim da platéia, assistindo ao show pelo telão. E lá se foram, mais uma vez, meus planos de fã número um por água abaixo. Tentei disfarçar a decepção, porque sempre tive noção do ridículo.

                Os meses se passaram em total dedicação ao bebê que se preparava para estrear no palco da minha vida. Meu futuro pop star, de quem eu seria fã incondicional e eterna. O dia do show enfim chegou e eu, já conformada, decidi chegar só com uma hora de antecedência. Queria evitar filas e tumultos, já que minha intenção de lugar seria pouco disputada e que o bem estar do meu bebê estava em jogo. Durante o dia fui acompanhando as notícias de mulheres (sim, mulheres supostamente maduras, as tais pseudo-fãs) que foram ao aeroporto, à churrascaria, à porta do hotel acompanhar a banda.  E eu sofrendo apenas algumas contrações no coração.  

                Marido e eu seguimos civilizadamente para o show, antes deixando nossa filha com uma amiga caridosa. Ah, e o bebê, é claro, dentro da minha barriga redonda, com sete meses de formação. Chegando ao local me deparo com uma cena inesperada: a fila dava voltas no quarteirão de forma que eu não conseguia achar o fim. Abordo a primeira pessoa uniformizada que vejo pela frente e eis que este indivíduo me fala, com a maior simplicidade do mundo: “Os portões vão abrir agora, pode passar aqui porque você é preferencial.”

                Calma lá. Preferencial? Eu? EU? Despeço do marido sem conseguir pronunciar uma palavra e entro de pernas bambas pela porta da casa de shows deixando para trás uma multidão de mulheres contorcidas de inveja. (Rá!) Lá dentro encontro uma paz enorme. O salão vazio ecoava os movimentos dos roadies que faziam os últimos ajustes no palco, tão maravilhoso como uma miragem no deserto. Antes que os portões se abrissem e eu tivesse que fugir com meu bebê para o fim do salão, fui até a barra do gargarejo e fechei meus olhos, imaginando o quanto seria emocionante assistir o show dali, o lugar mais cobiçado por todos. “Moça? Pode vir”, interrompe outro ser iluminado. “Ir para onde”, eu pergunto. Então ele me leva, com pompas de realeza, até meu banquinho especial, EM FRENTE ao gargarejo, para eu poder assistir ao meu show bonitinha, sentadinha, ao lado das minhas novas melhores amigas grávidas, acidentadas e cadeirantes.

                Foi lindo. Com direito a troca de olhares com meus ídolos queridos e até mãozinhas tocadas. Na barriga, meu filhão-parceria mostrava que mamãe também tem direito de curtir revival adolescente sem medo de ser feliz. 



*Eu, de camisa xadrez, tietando. Foto: divulgação.

Para Adriele.