sábado, 10 de maio de 2014

Minha vó

Minha vó é um encanto de pessoa. Há quem diga que foram os netos que amansaram a Dona Therezinha. Testemunhas oculares garantem que ela foi uma mãe ponta firme, sem paciência para frescuras e dona de uma psicologia do terror impiedosa. 

Meus tios e minha mãe hoje riem, embora com algumas sequelas, ao contar dos medos da infância incentivados pela própria mãe. Dona Therezinha sempre contava com a ajuda de um "homem do saco" ou de uma "mula sem cabeça" para fazer as crianças irem logo para cama. Se no meio da noite algum filho viesse incomodá-la, ainda com medo das ameaças fantásticas, ela logo cortava o chororô: "Deixa de ser mentecapto que essas coisas não existem".

Nem sei se acredito nesses testemunhos, porque a Vó Therezinha que eu conheço sempre foi muito diferente disso. Coisa boa era dormir no quarto dela, as férias inteiras. Ela preparava os colchões com os lençóis estampados do "Amar é" que até hoje existem, apenas com alguns remendos. Os travesseiros eram ela mesma quem fazia, com paina vinda não sei de onde e fronhas costuradas na sua máquina de pedal. Na bainha ela marcava as nossas iniciais à caneta, que era para ninguém inventar de usar o que tinha sido feito especialmente para nós, os netos. Antes de dormir ela sempre rezava e falava do anjo da guarda e o resto da noite era regida pelo seu ronco suave e ritmado. 

Vaidade nunca foi o forte da minha mãe. Culpa da matriarca, ela reclama, que vestia qualquer roupa que servisse nos filhos, não importava se o conjunto ornasse ou não. Era botinha para endireitar o pé com vestido colorido e pronto. Cabelo comprido era o sonho da minha tia, cujas madeixas eram mantidas sempre bem curtas, com franjinha no meio da testa, para evitar nó e piolho. 

Minha vó e eu, porém, nunca tivemos esse tipo de contrariedade: somos cordatas. Todas as férias ela pegava uma pilha de revistas Manequim e deixava eu escolher o modelo que eu quisesse. Mais gostoso ainda era escolher as estampas entre os quilômetros de tecido que ela armazena no guarda roupa junto com milhares de novelos de lã, usados para tecer agasalhos. Isso sem mencionar as tranças embutidas que só ela sabe fazer enquanto elogia o colosso de cabelo que eu tive a sorte de ter. 

Sorte mesmo é receber um elogio dela. Está aí uma coisa que parece nunca ter mudado: Dona Therezinha só diz o que pensa. Você nunca ouvirá dela algo que foi dito "só para agradar". Se alguém liga feliz para contar de uma gravidez, por exemplo, ela reage sem pudores: "Ah... coitada..." Isso porque sabe dos sacrifícios que só um filho pode exigir da vida de uma mulher. Se depois a mãe ainda tem a coragem de vir trazer o bebê para minha vó conhecer, corre o risco de ouvir um "Que coisa medonha!", ou então testemunhar um silêncio com uma sobrancelha arqueada - que é mais ou menos a mesma coisa. Ela é pura honestidade.

O que eu sei é que eu morro de admiração pela minha vó. Ela sabe de todas as coisas da cidade, da TV, da natureza e da vida. Não sei como consegue, de dentro da sua casa de sempre, sintonizar de tal forma com o mundo todo. Às vezes acho que ela guarda uma bola de cristal no armário. Armário este fechado à sete chaves, que só espio de vez em quando e enxergo um universo dentro. Ela diz que a gente só vai mexer ali quando ela morrer, então a gente controla o desejo e a curiosidade. 

O armário é apenas um dos seus mistérios. Dona Therezinha tem hábitos de feiticeira. Pra qualquer sintoma ela vai no terreiro e volta com um punhado de folhas para um chá milagroso. Tem receita para tudo, até para dor de cotovelo. Tem jeito para atrair passarinho e para espantar bicho indesejado. Tem novena para conseguir o que quer que seja e uma simpatia infalível para encontrar objetos perdidos que deixa São Longuinho no chinelo.  Na hora de ir embora das férias ela sempre fica de pé na calçada, entoando suas rezas baixinho e envolvendo o nosso carro com a energia protetora dos seus santos. 

Ela sempre sabe o que convém e o que não convém nessa vida e eu não hesito em pedir seus conselhos. Tão bom é poder conversar com ela, principalmente sentadas na mesa da cozinha, eternamente posta. Se ela foi uma mãe durona, eu não sei. O que eu sei é que minha vó é a melhor que eu poderia ter. 




2 comentários:

  1. Que lindo texto! Chorei pensando na sua e lembrando da minha! Que saudades que tenho da vó!
    Um Beijo
    Laurinha

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  2. Oi, Marina, que saudades! morri de rir do "mentecapto". Nunca tive uma relação muito próxima com nenhum dos meus avós, pois mudei cedo pra Brasília e eles ficaram em Fortaleza. E a vó com quem eu era mais apegada (a materna) foi a primeira a morrer. Espero que um dia minhas filhas possam ter essa relação com as avós...

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