Outro dia revivi um dos meus prazeres de infância assistindo “A História sem fim”, longa dos anos oitenta, cheio de efeitos especialíssimos. Basicamente, o filme fala sobre a decadência de Fantasia, reino fantástico da ficção. O vilão da história é o Nada, representado por uma imensa nuvem negra que vai engolindo tudo o que aparece pela frente, deixando para trás apenas o vazio. O salvador da pátria é um menino em NY que, em história paralela, lê a misteriosa narrativa sobre Fantasia e o Nada. A moral da história é que a Fantasia existirá enquanto acreditarmos nela e a povoarmos com nossas ficções. Lindo e profundo.
Se Fantasia dependesse da minha filha, estaria bem protegida do Nada. Sua imaginação é sem limites, ao ponto de transformar qualquer ação cotidiana em uma surpreendente aventura. Sua cabecinha tem um acervo inesgotável de elementos mágicos que ela insere na realidade quando lhe convém. Em épocas como o Natal, que naturalmente já fornece figuras extraterrenas como o Papai Noel, duendes e renas voadoras, fica tudo ainda mais fantástico. Ou pelo menos deveria ficar.
Mas diante de uma infância inteligentíssima, vejo que a Fantasia Natalina está gravemente ameaçada. O vilão da vez não é mais o Nada, mas o Tudo, com sua vasta estratégia de ataque.
O plano se inicia com o ano novo, apresentando tudo quanto é tipo de lançamento na televisão. Quase doze meses depois, no Natal, é bem provável que a criança já tenha ganhado boa parte de seus objetos de desejo. As ocasiões que o Tudo forja para presentear crianças são diversas: além do clássico aniversário e do dia das crianças, o Tudo abriu frente invadindo no dia das bruxas, dia de vacinação, dia de tristeza aguda, dia de despedida, dia de dente caído, dia de promoção e por aí vai. O presente de natal é só mais um entre tantos outros, varrendo pra bem longe as expectativas da noite de Natal.
O que manteria o espírito natalino pulsante nos coraçõezinhos infantis é a figura do Papai Noel, com sua aparição epifânica na grande noite. Mas o Tudo já se deu conta disso, distribuindo tudo quanto é tipo de Papai Noel cover em cada esquina da cidade. Você verá um exemplar em cada shopping que conseguir entrar. Golpe baixo do Tudo, responsável por problemas do tipo: “Mamãe, ele não mora no Polo Norte?”, “Mamãe, porque ele ficou tão magrinho de ontem pra hoje?”, ou “Mamãe, porque ele está aqui se ele tem que fazer presentes para todas as crianças do mundo?”. Isso se você não morar do lado do shopping e tiver o desprazer de ver o bom velhinho fumando um cigarro entre turnos, o que causaria danos irreparáveis.
O Tudo instalou seu exército nas lojas de brinquedo, onde levamos nossos filhos inconsequentemente durante o ano. Lá tem tudo quanto é brinquedo. “Mas mamãe, não é o Papai Noel e os duendes que fazem os presentes?” Já vi mãe ajeitando a saia justa dizendo que o Papai Noel modernizou, tem contatos diretos com as lojas e que agora ele compra em vez de fazer os brinquedos. Isso ainda as poupa de ter que trocar as já facilmente reconhecíveis embalagens das lojas por outras mais artesanais.
Driblar o Tudo diante de uma criançada cada vez mais esperta colocou o espírito natalino em xeque-mate. Bem mais fácil seria combater o Nada. Contra o Nada bastaria contar uma história de Natal antes de dormir ou assar biscoitos para o Papai Noel.
Imagem daqui.
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ResponderExcluirFantasia e o Tudo Natalino
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