De
férias no interior, o telefone toca. É a dona do salão da esquina, pedindo para
remarcar o horário do corte de cabelo do meu filho. A chuva está forte demais
para o cabeleireiro sair de casa. Eu
digo que tudo bem, porque o salão é
na esquina e porque são férias. A chuva cai sem culpa e todos se reorganizam
sem contestação.
Na
cidade grande a natureza não tem vez. Chuva forte é sinônimo de transtorno, dos
leves aos gravíssimos, sem nunca significar reorganização da agenda. Que as
casas desabem, que os carros flutuem... a multidão segue obediente no
cumprimento das obrigações, contestando apenas a impertinência da chuva.
Na
maior cidade do país, o que faz “o galo cantar” é o imperioso relógio. São os ponteiros que regem as pessoas,
ordenando que uns acordem e que outros durmam. Não tem isso de estar claro ou
escuro, porque o sol não tem moral nenhuma na capital. É com permanente susto
que olho para o relógio, redondo ao alto, e me dou conta de que é mais tarde do
que imaginava. Sempre é mais tarde do que imaginava. Desaprendi a olhar para o céu e ver o fim
do dia se anunciando em tons de vermelho. Não sei se é porque minha janela não
tem vista para o céu. Não sei se é porque os prédios estabelecem outra linha de
horizonte. Talvez não haja mesmo pôr do sol em tons de vermelho na cidade grande. O dia só acaba
quando o relógio decide, seja dia ou noite.
Corre-se para a cama calculando o que restará de sono até “o dia” seguinte, não
como quem finalmente se permite o descanso, mas como quem cumpre um último
compromisso diário. Horas depois, são os números na tela do celular que deixam claro que é hora de acordar.
Aqui no interior a chuva continua caindo. Escuto a chuva, vejo a chuva, sinto o cheiro da chuva. Lá na cidade grande, quando suspeito a chuva saio na janela para ter certeza, mas olho em direção à rua e nunca ao céu. É a presença dos guarda chuvas lá em baixo que me garantem a meteorologia, e não a fúria dos céus. A arrogância dos homens...
Num
ato de transgressão, comecei a fazer crochê. Não para me distrair, como muitos
dizem. Era questão de necessidade. Necessidade vital de estabelecer uma relação diferente
com o passar das horas. Descobri o tempo da trama que vai crescendo inutilmente,
ponto a ponto, e não segundo a segundo. O trabalho incalculável,
injustificável e insensato que só duas mãos limitadas são capazes de cumprir.
É
com satisfação e rebeldia que me cubro à noite com a manta tecida por mim.
Aqueço-me das horas roubadas e coloridas, na cidade grande.
Para Juliane Pugliese. <3 i="">3>
Nina volta a escrever com frequência...Amo as suas postagens
ResponderExcluirQue texto mais lindo, a delicadeza e simplicidades que tanto precisamos. No interior, a vida não é mentira.
ResponderExcluir