quarta-feira, 13 de maio de 2020

Nos limites da aldeia

Hoje assisti um filme cuja trama se passa na idade média, com dilemas de um rei, decapitações injustas em praça pública e longas cenas de violência em campos de batalha. Enquanto cabeças rolavam me detive num pensamento estranho, que venho colocar sobre o papel na tentativa de comprová-lo ou, quem sabe, de abandoná-lo. Os pensamentos estão sempre povoando minha cabeça, mas só aqueles que conseguem se deitar sobre o papel são dignos de palavra. O papel branco e inquisidor.

Enquanto cabeças rolavam tive vontade de ter nascido na idade média. Queria habitar uma aldeia e saber do mundo afora só aquilo que fosse capaz de testemunhar andando com minhas próprias pernas. Enraizada num espaço, conheceria suas pessoas, as boas e as ruins. Conheceria também as paisagens, as árvores, a vegetação, o curso do rio. Tudo me seria familiar de uma mesma forma: o vizinho, o bezerro, a alfazema.

Com pouca notícia para circular num espaço limitado, entre séculos de estagnação, ficaria atenta às notícias do vento. Leria as nuvens, a lua, o gemido dos bichos, a umidade da terra. As novidades, ora de vida, ora de morte, seriam recebidas com igual solenidade. Enquanto alguém adoecia numa casa, um broto rompia a terra do lado de fora. Tudo seria inquestionável como a sucessão das estações.

O tempo rastejante traria uma beleza diferente para todas as coisas. Das ovelhas criadas no pasto, a lã. Da lã, o tecido. Do tecido, a costura. Da costura, a saia vestida que se alisa pacientemente com a palma da mão. Mão que sova o pão, feito do trigo plantado, moído no moinho erguido por outras mãos. Mãos que tecem, que sovam, que aram, que constroem. Mãos sujas e feridas pela escassez. Tudo tão parte de tudo.

Queria sentir os pequenos prazeres, como o de concluir que as pedras que ergueram minhas paredes foram bem encaixadas. O prazer de ter um móvel ornado e acompanhar seus vincos com a ponta dos dedos. O prazer de livrar as roupas da lama, raramente. O prazer de varrer o chão batido, de pentear a terra como quem pinta um quadro. O prazer de ver a água ferver, de sentir o vapor queimando as bochechas. O prazer de colocar o alimento sobre a mesa, dentro do prato, dentro da boca.

Digo isso tudo sem nenhum conhecimento de causa. Da idade média só sei absurdos, mas enquanto as cabeças rolavam senti uma pontada de inveja. Rendi-me a insensatez desse pensamento antes que o medo me impedisse. O medo de dar corpo ao que penso.  O medo de pensar errado, de ser incoerente, de ser má interpretada. O medo de ser politicamente incorreta. O medo de ser injusta. O medo de me posicionar politicamente. O medo de falar do que eu não sei, do que não li suficientemente a respeito. O medo de não ter esgotado as bibliografias, de deixar brechas, de tocar onde não se deve. O medo de me expor.

Quem tem coragem de dizer o que sente quando o mundo inteiro é seu potencial espectador? Quem ousa sentir na inquisição das redes sociais onde cabeças rolam todos os dias?

*Imagem de Fornasetti Moves, disponível em www.yatzer.com.

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