sábado, 3 de março de 2012

Minhas reticências...

Ainda no velório, algumas pessoas se aproximaram dizendo que eu logo escreveria sobre a trágica morte do meu único irmão. Tais comentários me soavam completamente descabidos, tamanha era a minha convicção de que eu jamais, em hipótese e de maneira alguma, me submeteria a reviver tamanha dor. Poucos dias depois me surpreendi formando frases mentalmente e desfazendo-as em seguida, com medo do que elas pudessem revelar – assim como os sonhos que dão passagem para nosso inconsciente sem censura nem piedade. 

Primeiro pensei em escrever sobre a grandeza dessa dor. Procurei metáforas, mas logo percebi que a dor de perder alguém que se ama assim, subitamente e para sempre, é algo inominável. Não acredito sequer que tal sentimento caiba numa palavra tão pequena:  D, O, R. Talvez ela seja melhor expressada por uma anti-palavra, ou no máximo por reticências, os três pontos que se abrem para o infinito. 

Pensei em escrever sobre os pensamentos que antecederam o acidente, os pesadelos que já anunciavam a morte que eu, cega pela vida, não pude enxergar. Mas do que adiantaria redigir um dossiê de prenúncios, depois que o destino já impôs sua vontade e nada posso fazer para mudá-lo?

Pensei em escrever sobre os momentos mais intensos já vividos, como o longo minuto que durou a minha entrada pelo corredor daquele hospital, de mãos dadas com meus pais, rumo à pior notícia de nossas vidas. Mas imaginei que essa memória, quem sabe com o tempo, tivesse a sorte de ser esquecida. Assim preferi não registrá-la, deixá-la livre para se perder.

Pensei em escrever sobre a difícil tarefa de lidar com o peso da vida e da morte ao mesmo tempo.  Se tenho o dom de gerar vida em meu ventre, por que não pude fazer nada diante do corpo, ainda tão lindo, do meu irmão? Envergonhada da minha impotência e minha insignificância, desisti também deste texto.

Pensei, então, em escrever sobre Deus e a indignação que se instalou entre nós dois. Escrever sobre a coragem que cresceu em mim, fazendo-me capaz de desafiar Sua vontade como se fosse humano. Vontade de apagar Suas linhas tortas e ordenar que Ele reescrevesse minha história e da minha família sem esse erro terrível que seremos obrigados a carregar conosco até nossos últimos dias. Mas logo me peguei entregue a Ele, de uma forma nova e completa, pedindo Seu colo e afago de bom Pai, porque minhas forças  já tinham me exaurido. Brigar com Deus já não faria mais sentido. 

Pensei em escrever sobre a condição das estradas brasileiras, sobre o sofrimento compartilhado que une pessoas da maneira mais surpreendente possível, sobre a presença enorme que a ausência assume na vida de quem ficou. Ou então sobre a importância da solidariedade dos amigos, sobre minha vontade de carregar meus pais no colo e soprar suas feridas, assim como eles faziam antigamente. Escrever sobre a solidão de ter um sobrenome agora só meu e sobre o pânico de pensar que em breve eu o alcançarei na idade, como sempre brincávamos todos os anos de nossas vidas. Escrever sobre as vezes que peguei o telefone com vontade de ligar para o “departamento responsável”, constatar minha insatisfação e exigir um novo destino, uma outra história. Escrever sobre a fatalidade sorrateira que engana até a ordem da natureza. Escrever sobre tantas coisas que me embriagaram neste último mês. Mas ainda que minha dor – ou minhas reticências – se manifeste de tantas formas, tudo se torna pequeno diante do fato final, que é a morte. Esse mistério maior que cala todos os questionamentos, que nos tira o fôlego e a palavra. Diante das minhas intenções de escrita, vejo que não me resta outra coisa a não ser assumir, humildemente, minha incapacidade de compreender ou sequer relatar esta terrível experiência. 

Tive a melhor ideia até então, que era a de escrever sobre meu irmão da maneira mais otimista possível. Mesmo porque ele não gostaria, eu bem sei, de homenagens fúnebres e deprimidas. Hugo nem combinaria com um texto assim, da mesma forma que não combina com a morte. Melhor seria escrever sobre a intensidade da sua vida, sobre a forma com que ele conquistou tantas centenas de pessoas  que tiveram a sorte de conhecê-lo nos trinta anos de sua breve vida. Escrever sobre como ele foi lindo desde o dia em que nasceu,  sobre sua fidelidade e coragem. Mas ainda que eu escolhesse as palavras mais bonitas, as lembranças mais tocantes, ninguém que já não o conhecia teria ideia de quem ele foi. Ninguém o amaria como ele merece ser amado, nem sofreria sua perda como eu sofro. Prefiro, então, conservar meu irmão só para mim, nas lembranças de uma infância que agora não tenho mais com quem compartilhar e que vou guardar sozinha. Tesouro pesado e precioso.

 
Imagem de Kaidi Kriel

20 comentários:

  1. A dor de perder alguem não se iguala a nada, mas que seu coração fique sempre em paz com a certeza de que ele esta ao lado de Deus olhando por você e sua familia. Seu irmão ficaria muito orgulhoso ao ler suas palavras tão emocionante até para uma pessoa desconhecida como eu. Muita força pra você e sua familia, que Deus aqueca o coraçao dessa familia.

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  2. Marina, que saudades!! Uma pena ter notícias de você por uma ocasião tão triste. Meu abraço apertado, de mãe pra mãe.
    Qualquer coisa me escreva. Estamos aqui.

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  3. Filha, suas dificuldades, aflições e dúvidas são as mesmas minhas...também pensei em escrever algo e talvez até o faça no futuro. Por enquanto você escreveu por nós tudo que se pode num momento como este. E só posso acrescentar que você e o Hugo sempre foram e continuarão a ser a nossa maior obra na terra. Amo vocês em todas as dimensões e agradeço a Deus por ter me escolhido para ser pai de vocês.

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  4. Querida, sinto muitíssimo a sua perda - e da sua família.

    Não imagino realmente a dor que assola vocês agora, tenho um irmão mais novo (1 ano só), e realmente não importa se é mais novo ou mais velho, é irmão. E tenho uma irmã tbm. não imagino como deve doer a perda de qlq um deles. E, como não tenho palavras para diminuir suas reticências, espero que o seu luto seja renovado com energias positivas tão logo vc esteja pronta para isto.

    Fique com Deus.

    Abraços,

    Dani

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  5. Sinto muito mesmo Marina... Já perdi meu pai e foi uma dor imensa, sentimos muita falta dele até hoje. Porém, imagino que perder um irmão seja uma dor imensurável, pela proximidade maior, pela afinidade, pelo inesperado.
    Força, muita força...
    Grande abraço

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    1. Querida,
      vc escreveu tao bonito. Como sempre, mas agora, a dor que te motivou. E isso nao foi legal :-( Sinto Muito. E vc tem toda razao, tudo o que vc escrever sobre ele, só vcs que o conheciam vao saber o real valor de tudo. Uma perda é sempre irreparável. Sinto tanto por vcs.
      Marina, a única coisa que me veio à mente quando vc comentou comigo lá no blog, foi que Deus dá realmente o frio, conforme o cobertor. Nao sei se esse ditado é o mais correto, mas quero dizer, já vi isso muitas vezes. Deus tira alguém da gente, e logo em seguida, dá outro alguém. Seu irmao se foi. Seu filho ta vindo.
      Impressionante. É sempre assim...

      Desejo tranquilidade ao coracao da família. Abraco bem apertado meu amor.

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  6. Marina belas palavras.... to emocionando. Que saudade do Hugo. Impressionante sua força, impressionante com so há pessoas iluminadas na sua familia. Abraço...Curinga

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  7. Lindo!
    O Hugo está vivo em nossos corações.
    Você é uma pessoa especial.
    Que Deus te abençõe!

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  8. Acho que a intensidade é de família. Achei lindo o texto, muito verdadeiro. É difícil aceitar que a dor nos consome e que somos frágeis diante dessa situação. O conforto é algo que vem com o tempo e quanto maior o trauma mais longo a dor perdura. Seja forte, ampare-se em na família maravilhosa que vc tem. apesar de tudo vc ainda mãe,filha e esposa. Não se esqueça que possui uma responsabilidade com todos. Lembro de vc novinha em 1997 logo quando mudaram para bh e nem imaginava que se tornaria uma mulher tão visceral.

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  9. Mari, me identifiquei demais com o texto e adaptei alguns trechos pra mim ok? Dps vou publicar no meu blog...

    Sempre passo por aqui apesar de pouco comentar, mas se quiser visitar a minha casota seja bem-vinda! Estarei privando-o em breve devido a um momento peculiar q estou vivendo. Caso queira deixe seu email no comment q envio o convite ok?

    Um bjo, Gabi - gabirosaflor.blogspot.com

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  10. Nunca passei pela mesma experiência, mas por ter apenas uma irmã que amo e que é tão intensa e com qualidades incríveis, acredito que talvez pudesse me sentir um pouco como você se sente. Suas palavras são emocionantes, seu texto claro e envolvente, até mesmo neste em que estas características seriam um pouco dispensáveis. Só posso desejar força e conforto para você e sua família. E também dizer que você ganhou já um novo leitor. Um abraço.

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  11. Marina,
    amei. A gente quando perde alguém passa por todas essas etapas mesmo, mas o melhor está dentro do seu coração, das suas lembranças. Me emocionei com suas palavras. O Hugo foi amigo do meu primo João Paulo e da minha irmã Izabela. Que Deus te dê conforto

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  12. Ola Marina ,lindas suas palavra ,tive o prazer de conhecer o Hugo ,trabalhei com ele ,nossa a melhor pessoa que conheci até hoje ,isso vc deve saber de cor ,como vc disse no texto ,Ninguém o amaria como ele merece ser amado, nem sofreria sua perda como eu sofro.

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  13. Marina, muito belas e sábias palavras. Tive a grande sorte e enorme prazer de conhecer o Hugo, apesar de muito pouco, percebi a sua bondade e o tamanho do seu caráter. Conhecço bem melhor O pai de vocês, que é uma pessoa espetacular, e merecedor de filhos tão especiais!!!Enfim sinto muito por tudo isso, mas, tenho um consolo muito especial, sei que ele também foi recebido no CÉU, da mesma forma que seu avô: com uma grande festa!!!e é lá que ele se encontra ao lado de NOSSA SENHORA E COM TODOS OS ANJOS!!!Fiquem sempre com DEUS!!!

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  14. Tão bonito o seu texto!
    Identifiquei-me com ele porque fiquei viúva há 4 meses, depois de um casamento de 35 anos e de uma doença de menos de 2 meses! Foi terrível e está sendo e, como você,também quis escrever sobre o meu Marido e o que ele significou para mim e meus Filhos e, também como você, preferi ...então, conservá-lo só para mim, nas lembranças pessoais de todos estes anos de convívio que agora não tenho mais com quem compartilhar e que vou guardar sozinha. Tesouro pesado e precioso também para meus Filhos cuja cumplicidade com o Pai representa para cada um momentos únicos e particulares.
    Obrigada pelo que disse. Você escreve muito bem! Desde o início, quando começou a contar a sua vida de recém casada que a acompanho. Felicidades e que o Senhor conforte o seu coração pela perda do seu Irmão. Bjinhos.

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  15. Hey
    Minhas reticências..
    I enjoy your blog!, This unique is just a totally nicely structured posting, I do appreciate the writing
    Thank you!

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  16. Olá,

    você que é mãe solteira e da o maior duro para criar as crianças,que tem que deixar eles na escola no período integral.Da a maior dó né?
    Eu não sou mãe solteira,mas assim como vocês precisava trabalhar e deixar meu bebe na escola e foi ai que um amigo me mostrou como ganhar dinheiro pela internet e por isso vim aqui recomendar a todas vocês.
    No meu antigo emprego eu ganhava pouco mais de 1mil reais,hoje ganho isso em 7 dias,não é mentira.
    vou colocar o link aqui em baixo para vocês darem uma olhada,vale a pena.
    Beijos e sucesso a todas

    http://www.internetdinheiro.com.br/65078

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  17. Sem palavras...não conheci o Hugo, não te conheço, mas não pude evitar as lágrimas... Força!

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  18. Good day
    Minhas reticências...
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  19. Marina, querida:
    Acabo de reler esse texto, e acho que entendo o fato de você não ter escrito mais...
    Beijos, fique com Deus!
    Paty

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